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Puerpério e o isolamento social ou o "lado A" da pandemia




Foto: Pixabay


É muita gente que compara o confinamento e o isolamento social à prisão. As pessoas estão buscando imagens corriqueiras que lhes falem da falta de liberdade. Eu, eu penso em puerpério.


Quando minha filha nasceu, quase 5 anos atrás, me lembro de, ainda na maternidade, olhar para ela e achar estranho que ela estivesse deitada num bercinho de acrílico. Aquele corpinho que estivera 8 meses na minha barriga agora pousava ali, naquela superfície asséptica, transparente e fria. Senti que eu não me adaptara bem àquele momento de afastamento dos nossos corpos. Quando grávida, eu queria poder vencer a barreira dérmica do ventre para poder olhar para ela, vê-la se desenvolvendo, me certificar de que ela crescia bem dentro de mim. Inseguranças de quem lidava com os traumas da perda gestacional. Depois do parto, eu a queria segura, como ela esteve dentro do meu corpo. Intuitivamente, a peguei no colo e a trouxe para junto de mim, para o meu colo.


O princípio da exterogestação nos diz que os bebês seguem se formando no colo de suas mães depois de nascerem. Minha experiência me ensinou que as mães também. As mães também estão se fazendo mães enquanto dão colo para seus filhos.


Lembro que na primeira noite em casa, a pequena chorava muito. Ela se esticava e chorava. Chorava e tremia. Eu não sabia acolhê-la. Eu não sabia ser mãe. E se eu não sabia ser mãe, eu não era mãe. Naquele ambiente, no entanto, havia uma mãe, a minha, veterana nesse papel. Ela pegava a bebê no colo e, mais habilidosa aos meus olhos, isso me falava sobre o quanto eu desconhecia o papel que deveria desempenhar.


Com o tempo, aprendi que minha filha precisava de colo e eu também. Eu também quis, em alguns momentos, o colo da minha mãe. Precisamos viver a acolhida para produzirmos a acolhida.


Minha mãe viveu a sua maternidade como um dado instintivo e natural, como se o fato de ser mulher a habilitasse consequentemente para a maternidade. Eu, que recém começara a questionar os papéis de gênero, sabia que a maternidade não era uma natureza. Minha mãe estranhava o meu estranhamento. Talvez ela tenha achado que eu não tinha nascido praquilo. E de fato não tinha. Eu definitivamente não enxergava a maternidade como um atributo natural da mulher.


Esse desencontro entre mim e minha mãe, a minha referência mais imediata do que era uma mãe, se traduziu pra mim em sensação de desamparo, um dos desamparos entre tantos vividos naquele momento. E eu não me refiro a questões materiais – ela me ajudava com a rotina. Era um desamparo de espírito. Nenhuma solidão foi tão profunda. Eu chorava e eu não sabia explicar. O puerpério era aquele tempo-espaço necessário para o aprendizado da maternagem, do amor, da acolhida, que ora me atravessavam, enquanto eu elaborava meu desamparo e o luto do que eu fora até ali.


Até ali, eu havia me talhado como um ser da rua e não da casa. Eu inventava motivos para fugir das quatro paredes. Mas o puerpério era, especialmente nos seus primeiros meses, vivido dentro de casa. A fragilidade imunológica dos bebês demanda certo isolamento social, que se evitem ambientes fechados, aglomeração, etc. Havia um frasco de álcool gel próximo à porta de entrada do apartamento, tal qual agora.


Alijada da rua e de suas multidões, eu ansiava pela chegada das visitas. As pessoas vinham do mundo e me traziam algo dele. Ficava desejosa das histórias que cruzavam a minha porta. Elas eram a única coisa que, minimamente, me conectavam com o que eu fora até ali.


Numa manhã cedinho, enquanto fazia a pequena dormir depois de uma das várias mamadas da madrugada, eu fui para a janela ver a rua. O mercado ia abrindo as portas. As pessoas circulavam de um lado pro outro a caminho do trabalho, da escola. Lembro-me de, ao ver aquela cena, ter pensado: todas essas pessoas estão vivendo.


O luto do que eu havia sido, a falta de liberdade, o isolamento social e a intensa rotina doméstica me diziam, naquelas entrelinhas, que a minha nova vida não era vida. Eu me sentia um ser marcado pelo sinal de menos, um ser em falta, um não ser. O puerpério – como primeira experiência radical da maternidade – fez com que eu me encontrasse pela primeira vez com a mulher em mim.


Meu percurso de construção das possibilidades do vir a ser, atravessada pelo tornar-se mulher e tornar-se mãe, se deu no encontro – virtual, diga-se de passagem – com outras mulheres-mães, puérperas como eu. Foram elas que, coletivamente, me ajudaram a curar meu desamparo. Com elas, eu experimentei me dar, a mim mesma, a acolhida de que precisava, e a ressignificar os meus vazios. Fortalecida, eu pude oferecer uma acolhida inteira para a minha filha. Aquelas trocas, entre mulheres/entre mim e a pequena, tinham muita potência.


Meu corpo, até então, só meu, havia-se tornado um território compartilhado por mim e por ela. Meu corpo a alimentou, a amparou nas dores e inseguranças do desenvolvimento, a acolheu para que ela se deixasse dormir. Meu corpo, meu tempo, minha energia foram coletivizados para que nós duas pudéssemos nos fazer mãe e filha. Com o tempo, o isolamento social e os limites da casa foram ficando pra trás, nos permitindo ganhar a rua novamente.


5 anos depois, estamos em novo confinamento, ainda mais radical – sem visitas. Estamos todos imunologicamente frágeis perante a Covid-19. Nosso contato com o mundo exterior está restrito ao que chega pelas telas, pela janela e pela porta. Há 110 dias, me sinto experimentando uma espécie de puerpério. Não vivo o luto da vida de antes. Entendi que ela é impermanente. Aprendi que a casa pode ser – infelizmente, numa sociedade desigual não é para todas – um lugar seguro; e que o meu corpo de mãe (e agora também o da filha) é fundamentalmente o território da acolhida e do amparo. Esta é, enfim, a minha metade cheia do copo da pandemia.

 
 


Amanda Danelli Costa é historiadora, mãe, feminista e professora do Departamento de Turismo da UERJ.

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