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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Os bárbaros e o cortejo civilizatório das múmias



The New York Public Library | Cairo : the pyramids



Estive no Cairo em dezembro de 2009, era natal. Cerca de um ano depois, eclodiu o movimento que derrubaria o governo de Mubarack. Naquele janeiro de 2011, recebi, apreensiva, as notícias das grandes manifestações que tomaram as ruas do Cairo; buscava naquelas imagens reconhecer os lugares por onde passava e seguia com afinco as notícias de invasões no Museu do Egípcio do Cairo. Acompanhei tais acontecimentos como não acompanhei de nenhum outro país árabe em ebulição naquela que seria chamada de Primavera Árabe.


O porquê desse interesse me fazia pensar. É evidente que eventos dessa magnitude, em geral, nos chamam atenção pela intensa sensação de que estamos “vendo” a História acontecer de modo que raras vezes podemos contemplar. Constava, no entanto, outras nuances da minha passagem sonâmbula pelo país; fora uma turista vagando pelas antiguidades sem saber o que seria aquele lugar no tempo presente? As marcas da longa ditadura eram difusas; eu não tinha uma ideia clara de que o Egito vivia uma ditadura desde 1952 - e sob o governo de Mubarak desde 1981.


Na viagem, observei um único princípio estrito: pôr em prática um vagar desinformado e permeado de interesses entrecortados para que pudesse, a posteriori, juntar fragmentos daquilo que de fato me afetava, fossem histórias do Egito Antigo, fossem aquelas da contemporaneidade. Sem dúvida, as tensões expressas nas ruas no ano seguinte já estavam lá, manifestas nos detectores de metais instalados nas entradas das praças da capital, no trem noturno que viajava rumo ao interior do país de uso exclusivo de turistas estrangeiros, ou ainda, nas plantações de cana de açúcar que não chegavam até as bordas das rodovias como no Brasil e de lugares de visitação acessíveis apenas por meio de comboios turísticos; ambas medidas adotadas como prevenção de ataques a estrangeiros e ataques terroristas.


Além de índices de tensão, no meu vagar desorientado, vi tantas outras contradições que, esgarçadas pelo excesso das atividades turísticas, se colocavam a todo momento. O Egito foi, junto com a Itália e a Grécia, um dos primeiros destinos no nascimento do turismo. Se o Grand Tour, no século XIX, se caracterizou especialmente pela viagem aos países europeus, havia também um fluxo expressivo de viajantes em direção ao norte do continente africano, em especial para o Egito, onde se faziam, à época, grandes descobertas arqueológicas. Temos em Flaubert um desses viajantes célebres que passou pelo país, mas podemos lembrar de Dom Pedro II, cujas fotos diante das pirâmides Gizé são frequentemente usadas para exemplificar o caráter ilustrado do monarca. Assim, ao longo do século XX viajantes às terras do Nilo figuraram representados em dezenas de filmes e livros de todos os gêneros, como nas histórias de assassinato de Agatha Christie.


Foi desse modo que o Egito povoou o imaginário ocidental: com múmias, pirâmides e maldições. O dito mundo ocidental, por sua vez, colonizou novamente a economia do país tornando-a, no século XX, consideravelmente dependente do desembarque massivo de turistas que chegam em hordas, visitam os atrativos das cidades, em geral os sítios arqueológicos – alguns poucos se aventuram também por monumentos cristãos (coptas) ou muçulmanos – , e se vão.


A turismofobia é, todavia, um privilégio de países ricos. Aos países pobres, cabe aceitar as agruras do turismo massivo e sem responsabilidade social que, pouco ou nada, contribui para a comunidade anfitriã e a convivência com os impactos e conflitos sociais daí desencadeados. No caso do Egito, em 2010 a atividade representava 11,3% do PIB. Esse é um dos grandes dilemas que enfrenta o país desde 2011, quando seus movimentos sociais e a instabilidade política que se seguiu tornaram os turistas escassos (em 2012 os dados apontam uma redução de 25% no número de visitantes) e a recente retomada foi novamente interrompida pela pandemia de Covid-19.


Nesse contexto, amanhecemos no último sábado, dia 3 de abril, com imagens de um suntuoso desfile de múmias pelas ruas do Cairo. Pompa de Estado em um misto de alegorias carnavalescas, desfiles festivos republicanos e técnicas modernas de conservação arqueológicas: as múmias desfilaram em câmaras lacradas de nitrogênio.


Nos jornais brasileiros pode-se ler a repercussão do evento; em um deles, a declaração do responsável, o arqueólogo Zahi Hawass, que afirmava: “Escolhemos [levar as peças para] o Museu da Civilização porque queremos, pela primeira vez, mostrar as múmias de uma forma civilizada, educada, e não só para diversão, como era o caso do Museu Egípcio”.


O divertimento do Museu Egípcio foi para mim um dos pontos mais pulsantes da relação do país com as antiguidade egípcias; muito distante da assepsia civilizatória dos museus europeus e estadunidenses. O Museu do Cairo, como também é conhecido, é uma caixa de contradições coloniais e, como tal, é um dos espaços mais civilizados do Egito – perdendo muito provavelmente apenas para os templos de Abul Simbel, colossal obra de engenharia que deslocou montanhas e criou um sítio visitável nos padrões Unesco sob financiamento de fundos europeus. Já o museu, construído no século XIX, segue à risca os padrões civilizados de organização de peças e coleções da museografia européia civilizada em voga na época, hoje em dia visivelmente datado. As fotos disponíveis na internet indicam que o museu segue idêntico à época de minha visita: a sua atualização são o Museu Nacional da Civilização Egípcia, para onde as múmias foram transportadas, e o super empreendimento Grande Museu Egípcio também em vias de ser inaugurado.


O incômodo, aparentemente, é o fato do museu não seguir se atualizando no modelo museológico e expográfico europeu. Assim, no Museu Egípcio as coleções estão longe de serem expostas em vitrines de vidro sem bordas, destacadas em suportes acrílicos e impecavelmente iluminadas por focos de luz matizada, além de todos os aparatos de mediação cultural (dos textos de parede aos QRCode que levam às visitas orientadas, disponibilizadas nos sites das instituições) comuns em seus congêneres europeus. Lá estão quase empilhadas, dada a profusão de peças, em armários de madeira com portas de vidro como os que se usavam nos antigos gabinetes e laboratórios de universidades. As peças, ao invés de serem selecionadas e individualizadas, legando as similares aos galpões da reserva técnica, estão expostas repetidamente (ainda assim, consta que o museu possui uma quantidade enorme de obras em reserva). Os escribas, esculturas que em museus como o Louvre ocupam exclusivamente uma vitrine muito bem iluminada, formavam no Museu Egípcio prateleiras infindáveis. A abundância do museu me fascinou; ao invés de mostrar a singularidade de cada peça, apresentava a profusão da cultura material e seus usos na vida desenvolvida naquele território há cerca de 5 mil anos.


Evidentemente, o que parece estar em vias de ser civilizado e educado com a inauguração dos novos museus é, antes de tudo, o povo egípcio, com suas formas de fruição e modos de vida, que circulava também pelo museu. Os ingressos eram os mais acessíveis de todos os monumentos que visitei. Ainda que para a população isso pudesse ser um valor alto, não parecia proibitivo. Além disso, havia níveis de acesso: para visitar as salas das múmias, era necessário outro bilhete que possivelmente tornava a visita mais acessível economicamente, embora incompleta. Ainda que no museu houvesse grandes quantidades de turistas estrangeiros, a concentração era significativamente mais diluída que em outros centros de visitação de antiguidades egípcias, nos quais diversas vezes só encontrávamos estrangeiros – em sua maioria europeus. Com isso, os modos de agir e se comportar no espaço do museu ganhavam novas formas. Ademais, somavam-se práticas comuns no país em lugares turísticos, como é o caso das “gorjetas” solicitadas pelas coisas mais diversas; à entrada do banheiro feminino do museu havia um cartaz em inglês precavendo as estrangeiras: “no tips”. No ambiente do museu, sentia-se, sobretudo, alguma partilha com os moradores da cidade que também estavam ali por lazer e não apenas desempenhando funções de serviço. Essa breve convivência, plena de pequenas incompreensões, fazia-me pensar nas relações de meus anfitriões com aquela cultura milenar; por vezes, tive a sensação de que aqueles objetos, deuses e templos, eram tão estrangeiros aos egípcios quanto eram para mim. Nas poucas conversas que pude estabelecer com meu inglês precário, observei o quanto meus interlocutores gostavam de falar dos suntuosos monumentos muçulmanos e que havia uma certa alegria quando eu contava as minhas impressões. Pensava que era por orgulho da cidade dos mil minaretes, mas também pelo fastio dos repetidos elogios às antiguidades faraônicas.


A repetição da palavra civilizado nos parágrafos anteriores é claramente proposital, posto que por ela só podemos compreender modos de reprodução de pensamentos coloniais que ainda marcam profundamente as atividades turísticas. É oportuno lembrar a definição dadapor Norbert Elias: civilização “expressa a consciência que o Ocidente tem de si mesmo” (1994, p. 23).


A conhecida discussão levantada pelo autor entre os termos civilização e kultur é bastante oportuna em nossa tentativa de decifrar os significados do desfile e do ressurgimento do impulso civilizatório. Elias salienta justamente a associação entre civilização e a ideia de “movimento incessante adiante”, aspectos subsumidos também nas recorrentes expressões de progresso e desenvolvimento. Desse movimento, espera-se uma tendência à harmonização dos comportamentos e expressões de grupos ou nações. Dá-se ênfase ao comum em detrimento das diferenças, que seriam indesejáveis. Por comparação, Elias explora a significação do termo kultur, que apontaria para a valorização das diferenças e aspectos identitários constitutivos de povos ou coletividades, assim como o auto reconhecimento dessas peculiaridades.


É no termo civilização que Elias repousa a força expansionista, o cerne do colonialismo e a persistência da imposição de padrões de sociabilidade e de fruição de experiências estéticas, culturais ou artísticas. As análises do sociólogo, feitas ainda na primeira metade do século XX, reverberaram na predominância do uso da palavra cultura na atualidade e, principalmente, pela adoção de princípios de valorização das diversidades, como pautam, por exemplo, a Declaração do México – resultado da Conferência Mundial sobre as Políticas Culturais – redigida em 1982 (UNESCO, 1982).


A prática indica, no entanto, que Civilização parece ser um conceito persistente. No Egito, o cortejo apenas o recolocou em destaque: o que dizer das dezenas de Cleópatras em estilo Liz Taylor? A civilização já se manifestava no início dos anos 1990, na gestação dos projetos dos dois novos museus; arrisco a dizer que nunca esteve ausente desde 1952. Há muito mais continuidade do que ruptura nessa busca por civilização: da transição do protetorado inglês ao governo nacional, abriu-se caminho para outras formas de domínio, como por exemplo as holdings. A construção do Grande Museu Egípcio se deu por meio de uma holding belga. Nesse processo, os bens culturais são reinvestidos de valores essencialmente comerciais regidos muito mais pela lógica da Organização Mundial do Comércio do que pelos preceitos da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural (UNESCO, 2002), com os quais se procurou resguardar o direito à diferença, e sobretudo, pensá-la como patrimônio da humanidade.


Do novo museu egípcio, espera-se, pelo visto, a substituição do divertimento descompromissado por um divertimento ilustrado, tão démodé e deslocado quanto os relatos de viajantes do século retrasado. Tudo indica que os grandes empreendimentos culturais são, na verdade, grandes investimentos turísticos atrelados a mega projetos de arquitetura contemporânea, sem conexão com a realidade local, um deles assinado por um arquiteto sino-americano. Mas toda essa civilização precisará conviver com as incessantes convocações que, do alto dos minaretes, inundam as cidades egípcias às sextas-feiras, com as ruas tomadas por homens e seus tapetes voltados para Meca e com o caótico trânsito incorporado à lógica da cidade. O Egito continuará esperando a horda de bárbaros, torcendo para que eles invadam o país na próxima temporada de férias. Eu, de minha parte, estarei na expectativa de que os egípcios reinventem, uma vez mais, incivilizadas formas de subversão, pois a cultura prolifera-se ainda mais pujante nas bordas ao estressar as fronteiras previamente delimitadas.

 
 

Referências


ELIAS, Nobert. O processo civilizador. 2ª ed. Trad. Ruy Jungman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. vol 1.

 


Suianni Cordeiro Macedo é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas, atualmente atua na área cultural do Sesc São Paulo.

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