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Do luto e da luta



Manifestação, 8 de março de 2016. Avenida Paulista, São Paulo. Foto da autora.


nada vai mudar – nada nunca vai mudar – a mulher é uma construção Angélica Freitas
If we are truly dancing our swan song, darling Shake it like never before Sleater-Kinney

Sempre assisti ao 8 de março com um misto de revolta e de melancolia. Em meio a clichês, saudações de qualidade estética duvidosa e um deserto de significados políticos, o incômodo prevalece. Dói ver tão esvaziado, tão mercantilizado, tão desprovido de energia e de esperança um dia que, penso, deveria ser de luta e – talvez nestes mais que em quaisquer tempos recentes – de luto. Mais ainda quando o 8 de março se tornou, na minha pequena sucessão de dramas pessoais, o dia em que eu me lembro da Paula.


* * *


O ano era 2016. Minha vida estava, literalmente, de cabeça para baixo; o país, não menos. Eu queria ir ao ato que aconteceria na Avenida Paulista, mas hesitava por não ter encontrado companhia. Não eram tempos para mulheres se arriscarem a fazer política sozinhas (e quais o são?). No último instante, meus caminhos se cruzaram com os da Paula, e desci animada para o asfalto, apesar de tudo.


A Paula que eu havia conhecido pelos corredores da USP, que certamente estava várias quadrinhas à minha esquerda no espectro político, e que eu suspeitava não ter lá muito respeito pelas minhas visões sobre a conjuntura nacional. A Paula de origens periféricas e ascendência japonesa, que se desdobrava entre a docência em escola pública, um processo conturbado de mestrado e sua caótica energia militante. A Paula de quem eu me havia aproximado por motivos que então compunham o meu sofrimento, e que me prestava um inesperado e muito bem-vindo acolhimento.


O ato rachou, fraturado entre aquelas que queriam fazer da marcha uma manifestação de apoio à então ainda presidenta Dilma Rousseff e setores mais à esquerda que rejeitavam energicamente essa apropriação (um triste prenúncio de outros dilaceramentos por vir?). Na metade que se pretendia mais radical (por escolha dela antes que minha), eu e a Paula gargalhamos juntas quando nos vimos diante de uma ciranda bem literal, nos tempos em que “esquerda cirandeira” começava a se consolidar como uma piada da internet.


* * *


“I can’t believe we still have to protest this SHIT”.


Era janeiro de 2017. Por uma série de rearranjos e coincidências infelizes, eu pousava em Nova York no dia da posse de Donald Trump. Cometi o lapso de iniciar minha temporada de pesquisa em Washington um dia depois da mítica mobilização que povoou o National Mall de touquinhas de crochê rosa, emulando orelhas de gatos, em um deslocamento irônico de uma das inúmeras declarações misóginas do novo presidente. Mas a Marcha das Mulheres fora pensada como uma intervenção multicêntrica, uma assembleia transfronteiriça de corpos e vozes que se erguia contra um acúmulo de opressões – parafraseando alguns dos termos empregados em um livro de fotografias lançado quase de imediato para perpetuar “7 continentes, 82 países, 5 milhões de pessoas” em movimento. Também haveria manifestação em Manhattan. Ali eu estava sozinha, ali eu desconhecia o labirinto de arranha-céus, mas isso não importou, não muito.


Benjamin já me havia ensinado que não é filosófico se espantar com o fato de que certas coisas ainda sejam possíveis – ou, no preciso comentário de Brecht às fragmentárias reflexões de seu amigo filósofo sobre a história, jamais devemos agir como se o fascismo “não fosse fruto de todos os séculos”.


Mesmo assim, foi impossível não me sentir representada pela enfática incredulidade exibida por uma outra das centenas de milhares de manifestantes que bloquearam, por uma manhã e uma tarde inteiras de inverno, toda a região central de uma das maiores cidades do mundo. Sua revolta invariavelmente vem à tona em minhas recordações, nos tantos outros momentos em que se faz imprescindível dizer o óbvio, em que se precisa lutar pelo que deveria ser mais básico, estar mais assegurado.


Encontrei outra declaração tristemente visionária em plena Quinta Avenida. Uma senhorinha segurando, com uma expressão que oscilava entre o fastio e a autoconfiança esclarecida, um cartaz com os dizeres: “Facts & Science Matter”.


* * *


Recebi a notícia da morte da Paula na sala de embarque do voo de retorno dos Estados Unidos, na véspera do 8 de março seguinte àquele em que ela me acompanhou. Ela fora acometida por um brutal câncer no cérebro, descoberto tardia e assustadoramente. Nunca deixei de me perguntar se os desdobramentos poderiam ter sido outros, tivesse ela contado com o tempo e os recursos materiais adequados para o cuidado de si.


Já bastante doente, nos meses finais de 2016, a Paula fez questão de me receber em sua casa e de me servir um pastel de choclo. Prato típico de um Chile ao qual ela ainda tinha esperanças de se deslocar, para cursar um mestrado em estudos de gênero que lhe poderia possibilitar uma experiência mais feliz de pós-graduação. Ela errou muito na quantidade de sal, mas eu devorei tudo como se fosse a maior das iguarias. E não era?


* * *


Decolei de Santiago sem nada conhecer na manhã de 8 de março de 2017, em um itinerário aéreo econômico e despropositado que subitamente pareceu ganhar algum sentido, quando olhei para os Andes e pensei que poderia ser em memória da Paula que eu passava por ali, justamente naquele momento.


* * *


O 8 de março de 2016 também foi o dia em que eu criei minha primeira-playlist-de-artistas-mulheres. Uma ocupação meio boba, talvez; um bocado esnobe, certamente; mas que me propiciou alguns encontros felizes, que me ajudou a manter um pouquinho da sanidade mental durante tempos difíceis, que por vezes me deu força para seguir, em meio às tantas violências que se inscrevem cotidianamente sobre os nossos corpos.


Na arte, na política, no ambiente desoladoramente inóspito para as mulheres que costumamos chamar de academia, abraçar-nos umas às outras (por ora apenas de forma metafórica, por favor, mesmo que estejamos cada vez mais justamente saturadas das insuficiências do virtual) talvez seja a única estratégia que nos resta para sobreviver. Precisamos, igualmente, recordar aquelas que já não estão aqui, inclusive as que se foram por causa de multiformes atentados contra a integridade física e psíquica, neste país que conta a mortalidade de jovens que mal tiveram a oportunidade de se tornarem mães entre suas deprimentes estatísticas pandêmicas.


Precisamos nos lembrar de que o luto pode e deve alimentar a luta.

 
 

Referências


BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: LÖWY, Michel. Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”. São Paulo: Boitempo, 2005.

BRECHT, Bertolt. Arbeitsjournal. apud BENJAMIN, Walter. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2012, p. 173-174.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

WEINER, Samantha; JACOBS, Emma (eds.). Why I March. Images from the women’s march around the world. Nova York: Abrams Image, 2017.

 


Mariana de Moraes Silveira é professora de Teoria da História e História da Historiografia na Universidade Federal de Minas Gerais. Esta é a única e imperfeita evidência de que ela esteve na Marcha das Mulheres de Nova York, em 21 de janeiro de 2017.

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