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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

“A escola não cabe na tela”

Relato de experiência sobre caminhos do ensino de História na pandemia




Há quase onze anos, recém-formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), comecei minha carreira profissional como professora de História dando aulas para adolescentes nos anos finais do Ensino Fundamental em uma escola pública municipal do Rio de Janeiro. Desde então, passei por seis escolas diferentes com alunos em sua maioria moradores de comunidades da Zona Sul, da Zona Norte e da Zona Oeste da cidade. É uma realidade relativamente comum na rede municipal que professores recém-chegados tenham que “peregrinar” entre diferentes escolas de uma mesma coordenadoria.


O cenário não era para mim uma novidade, pois como aluna cursei toda a escolarização básica em escolas da rede pública municipais e estaduais. Sou fruto das políticas públicas de democratização de acesso ao ensino superior. Basicamente, eu sabia que as condições trabalho não seriam as melhores possíveis.


É um lugar-comum a afirmação de que ser professor da educação básica no Brasil não é fácil. A carreira e o trabalho não são valorizados, a remuneração é baixa, a jornada de trabalho é extenuante, faltam recursos materiais e humanos, a violência escolar é uma realidade, dentre tantos outros fatores que quem está em sala de aula conhece de perto.


Acredito que minhas principais dificuldades, no entanto, foram relacionadas ao fato de eu ter que me acomodar ao (novo) papel que desempenharia ali. Ter que desmanchar a imagem que eu tinha da professora que eu deveria/queria ser e vislumbrar a professora que eu precisava ser para os meus alunos, ou mesmo a professora que eu dava conta de ser, a despeito das minhas expectativas prévias. Tive que ponderar o papel da escola e do ensino de História na vida daqueles adolescentes e entender que, a despeito dos meus desejos de dar a melhor aula de História que eu pudesse dar, eu estava tratando com pessoas em formação. Tive que aprender a reavaliar certos conteúdos, por mais importantes que parecessem para mim. Mais significativas que as aulas de História, eram as relações que se estabeleciam naquele ambiente e que se desenrolavam para além do espaço de 50 minutos que eu passava com cada turma.


Não estou defendendo que a formação docente não é importante, que a escola e as(os) professoras(es) – dados do Censo Escolar de 2017 divulgados pelo Ministério da Educação apontaram que 80% dos 2,2 milhões de docentes que atuam na educação básica no Brasil são professoras – não tenham a função de ensinar conhecimentos específicos ou que a didática não seja necessária. É justamente o contrário. Minhas considerações se fazem no sentido de perceber que uma escuta atenta se faz necessária no espaço escolar e isso só é possível, a meu ver, a partir de uma formação consistente e continuada em sentido humano e amplo.


Desde março, com a paralisação das aulas presenciais em decorrência da pandemia, muitas escolas públicas e privadas adotaram estratégias de ensino remoto ou educação a distância visando minimizar os prejuízos no processo de escolarização de seus alunos. No Brasil, dados da UNESCO apontam que 81,9% dos alunos da educação básica deixaram de frequentar presencialmente as instituições de ensino às quais estão vinculados. Nesse panorama, nos últimos meses não foi incomum encontrar na internet diferentes relatos e pesquisas sobre as dificuldades e obstáculos enfrentados na concretização desse ensino não-presencial por parte de professoras(es), alunos e famílias. A pandemia evidenciou o papel da escola como espaço de socialização, interação e desenvolvimento para as crianças e adolescentes que a frequentam e mostrou a relevância desses aspectos para o processo de aprendizagem. Mostrou a escola como lugar de produção de conhecimentos e não apenas de reprodução na forma de conteúdos repassados aos alunos.


No que diz respeito aos estudantes da educação básica de escolas públicas, a implantação do ensino remoto em caráter emergencial evidenciou a exclusão digital manifesta nas dificuldades ou mesmo na ausência completa de acesso a dispositivos tecnológicos e à internet.


Na rede municipal da cidade do Rio de Janeiro, a recomendação era a de que as direções das escolas definissem o melhor meio para manter o vínculo com a comunidade escolar no período em que as escolas se mantivessem fechadas. Paralelamente, a Secretaria de Educação lançou um aplicativo contendo atividades pedagógicas atualizadas semanalmente com conteúdos destinados a alunos de todos os segmentos e modalidades atendidos pelo ensino municipal, da educação infantil a educação de jovens e adultos.


As duas escolas nas quais trabalho (uma na Zona Sul e outra na Zona Oeste da cidade) inicialmente optaram pela utilização do Facebook como ferramenta de veiculação de informações e compartilhamento de materiais das(os) professoras(es) para os alunos. Inicialmente, a ideia era não adiantar conteúdos, mas realizar atividades de revisão e reforço. Com o passar do tempo, as diretrizes centrais se enfraqueceram, ficando a cargo de cada escola e de seus professores estabelecer o que seria trabalhado em cada série e disciplina.


Nesses quase seis meses de isolamento e fechamento das escolas, algumas coisas mudaram no que diz respeito à adaptação das práticas pedagógicas para o universo virtual. Uma das escolas em que trabalho adotou a plataforma Microsoft Teams, foram criadas salas virtuais, tivemos reuniões pedagógicas remotas, fizemos cursos e workshops disponibilizados pela prefeitura sobre temáticas como ferramentas para encontros síncronos, produção de conteúdo, gravação e edição de vídeos, formulários interativos, slides dinâmicos, infográficos, mapas mentais digitais e mais uma infinidade de recursos que o uso das tecnologias poderia proporcionar se todos os nossos alunos – ou pelo menos a maioria deles – tivessem acesso a elas.


Nas reuniões remotas das(os) professoras(es) com a equipe gestora da escola, são relatados retornos de acesso e feitura das atividades propostas muito abaixo do esperado. A dificuldade de conexão é apenas a “ponta do iceberg” dos problemas enfrentados pela infância e juventude estudante de escolas públicas municipais na cidade do Rio de Janeiro. Fatores como o desemprego e adoecimento de membros da família em decorrência da pandemia, insegurança alimentar, trabalho infantil, violência doméstica e dificuldade de realização das tarefas sem supervisão também são cogitados nas reuniões como tentativas de explicar o insucesso de boa parte das atividades propostas no contexto do ensino remoto.


Diante dessa complicada conjuntura fiquei me perguntando se faria algum sentido produzir e disponibilizar atividades e conteúdos online, se boa parte dos alunos estaria excluída desse universo. Confesso que, em um primeiro momento, desprovida de qualquer tipo de orientação, entrei em um jogo de tentativa e erro do qual talvez ainda nem tenha conseguido sair. Tentei criar atividades com textos que os alunos pudessem responder no caderno, disponibilizei links de vídeoaulas no YouTube, formulei quizzes, propus que escrevessem uma espécie de diário da quarentena que pudesse ser usado quando as aulas presenciais voltassem (que ingenuidade, a minha) como um registro desse momento de nossas vidas e trabalhado como fonte histórica, passei exercícios do livro didático, me coloquei à disposição para esclarecer as dúvidas... Parecia que nada tinha engajamento ou retorno, apenas algumas visualizações e curtidas.


Um comentário no grupo do Facebook feito em uma postagem do professor de Artes Cênicas pela mãe de um aluno do oitavo ano me apontou um caminho que julguei melhor do que o que eu estava seguindo naquele momento, mas não sem antes suscitar alguma resistência da minha parte. A mãe lamentava que o professor não lecionasse na turma do seu filho, pois em suas palavras ele era o único que tentava interagir com os alunos.


Fui imediatamente em busca do que esse professor fazia de diferente e descobri por meio de suas postagens que ele produzia pequenos vídeos contendo conversas com os alunos e explicações das atividades que propunha. Esse pequeno gesto de “aparecer” para alunos e famílias fez toda a diferença para aquela mãe e, quem sabe, também para o seu filho. Não se trata apenas de o professor lançar na plataforma o conteúdo de forma mecânica, por meio de atividades soltas ou de links de videoaulas tiradas do YouTube, que trabalham muito bem as temáticas, mas que mostram na tela um rosto que não é familiar, que não faz parte do cotidiano e do convívio dos alunos.


Faço referência às palavras da coordenadora de uma das escolas em que trabalho em uma reunião remota sobre planejamento: Os alunos e famílias querem sentir que existe alguém por trás da tela, que existe uma pessoa falando com eles. Cada professor pode fazer essa comunicação com os meios que estiverem à sua disposição e respeitando o seu próprio processo.


Vencida a resistência inicial da minha parte, comecei a gravar meus próprios vídeos. Apesar de não ser tímida para falar em público, afinal, sou professora e isso faz parte da escolha, não me via falando em frente de uma câmera. Tinha medo que vazassem para além dos grupos da escola, que os alunos fizessem memes, que a minha fala não ficasse clara, me sentia ridícula de falar para um público imaginário, de ser tachada de digital influencer e que os alunos me vissem como uma pessoa pouco séria. Nós professoras(es) temos medo de que, se não nos colocarmos em uma posição de seriedade, o aluno perca o respeito por nós e muitas vezes não nos permitimos fazer experiências na sala de aula ou fora dela.


Me vi gravando vídeos curtos, com pequenos recados, evoluindo para vídeos com pequenas explicações de atividades, até chegar em vídeos mais descontraídos, com textos mais espontâneos, edição com imagens e memes (agradeço ao meu marido por essa parte porque eu ainda não aprendi a editar) e videoaulas. Tenho me permitido timidamente provar formatos diferentes, embora ainda tenha receio de que os vídeos “vazem” de um ambiente no qual fazem sentido, os grupos da comunidade escolar, para o mundo da rede, no qual tudo pode ser tirado de contexto e interpretado de forma enviesada. Continuo recebendo poucas visualizações e curtidas, mas segura de que estou fazendo o melhor que posso.


Finalizo esse breve relato de experiências com uma reflexão em torno dos escritos da filósofa Paula Sibilia (2012a, p. 211), que afirma que a escola não deve ser abandonada como uma instituição formadora, como defendem trabalhos que apontam a sua obsolescência diante de um mundo dominado pelas tecnologias. A autora concebe a escola também como uma tecnologia, uma aparelhagem criada para responder aos compromissos da sociedade moderna, que, da forma como está configurada, cada vez mais se mostra incompatível com as subjetividades dos corpos juvenis, mas que tem potencial de se transformar. Sibilia sugere que as tecnologias de comunicação, inclusive dentro da escola, devem ser encaradas como “espaços de encontro e diálogo”, como redes ao invés de paredes. (2012b, p. 209)


A escola não cabe na tela e espero que isso tenha ficado óbvio nesse período pandêmico. Longe de garantir o acesso de todos à educação em um país desigual e excludente como o nosso, as tecnologias se mostram como possibilidades abertas de fomentar diálogos em um momento incomum como o que estamos vivendo e para além dele. A escola se faz necessária, desde que esteja disposta a derrubar as paredes que a impedem de ser um lugar de trocas de experiências e produção de saberes.


Eu, de repente, me compreendi necessária como professora de História porque (re)aprendi que o que menos importava nesse contexto era oferecer e cobrar conteúdos e que qualquer aula, mesmo remota, nunca pode ser uma prática unilateral.

 
 

Referências


SIBILIA, Paula. Redes ou paredes: a escola em tempos de dispersão. Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012.

SIBILIA, Paula. A escola no mundo hiperconectado: Redes em vez de muros? Matrizes, vol. 5, n. 2, enero-junio, 2012, pp. 195-211.

 


Nayara Galeno do Vale é professora da Rede Pública Municipal de Ensino do Rio de Janeiro e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

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