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Vamos aos fatos!



Foto de Martin Péchy


Teoria da História é uma coisa muito abstrata e o(a) aluno(a) que chega ao curso geralmente procura por algo mais concreto: os fatos. “Vamos aos fatos, professora, porque eu quero saber o que realmente aconteceu, o que eu não aprendi na escola, o que o professor e o livro didático não contaram”. A frase é fictícia, mas a situação é corriqueira. E o que acontece quando o(a) aluno(a) que pergunta sobre os “fatos” percebe que, a cada semestre, ela é, ao menos em parte, frustrada?


Antes de tentar responder, convém perguntar: o que é um fato? De acordo com o dicionário, fato é palavra de origem latina (factum) e significa "tudo aquilo que acontece por ação do homem ou em decorrência de eventos exteriores ou naturais, que independem da vontade humana”. Uma expressão latina traduz as realizações humanas: res gestae, coisas feitas. Sem dúvida, o fascínio pelo passado está diretamente relacionado aos fatos ou ao modo como são contados. Fatos povoam nossa imaginação e constituem a matéria pela qual os(as) historiadores(as) se interessam. Eles e elas também querem saber o que aconteceu. É um tipo de gente muito curiosa. E também persistente, porque às vezes é preciso procurar muito até encontrar vestígios desses fatos. E depois é necessário avaliar o que dizem, considerando como, por que, quando, onde e para quem dizem alguma coisa sobre algo que, supostamente, aconteceu. E há vestígios que nem sabemos muito bem se remetem a algo ocorrido, mas que podem, junto com outros indícios, ser relacionados uns com os outros em uma trama mais ou menos elaborada, que os(as) historiadores(as) constroem para tentar explicar o ocorrido. É um tipo de quebra-cabeças cujas peças nem sempre se encaixam.


Os fatos parecem com um dado, que os historiadores e historiadoras procuram, acham e mostram ao contar uma história. Como se fosse uma coisa pronta e acabada, que pode ser fixada de uma vez por todas. Um historiador inglês chamado Edward Carr (1892-1982) observou que isso funciona como se os fatos estivessem disponíveis para os historiadores nos documentos “como os peixes na tábua do peixeiro”. Aos historiadores bastaria “reuni-los, depois levá-los para casa, cozinhá-los, e então servi-los da maneira que o atrair mais”. No entanto, no curso de História, alunos(as) aprendem que os fatos não são exatamente isso e que existem outras ideias sobre o que os historiadores fazem.


Se o passado é composto por um conjunto de coisas feitas por alguém, em algum momento, em algum lugar, tudo o que deixou algum vestígio pode servir como matéria-prima para historiadores(as), que se dedicam a transformá-la em outra coisa a que chamamos fatos históricos. Deles só possuímos indícios, de diversos tipos, em maior ou menor quantidade, qualidade e complexidade. E por meio de uma série de procedimentos de investigação, análise, interpretação e narrativa, os(as) historiadores(as) constroem fatos. Então, perguntam alunos e alunas: "os fatos saem da cabeça dos historiadores?". Não é bem assim.


Alguns disseram que os “fatos falam por si”, dispensando ações do investigador. Mas, os fatos dependem da existência de indícios e só falam quando o(a) historiador(a) lhes pergunta alguma coisa e, ao fazer isso, ele(ela) decide, por suas próprias razões, que esse fato tem importância e, por isso ele pode ser considerado como histórico. Como disse Carr, “o historiador é necessariamente um selecionador”. Mas, será que basta perguntar algo aos vestígios do passado para que o fato seja estabelecido? Não. E poderá um fato ser estabelecido de forma irrefutável? Mais uma vez, a resposta é não, porque uma nova informação pode ser descoberta ou novas questões podem conduzir a outra interpretação, o que pode gerar controvérsias. E isso permite que a história seja reescrita.


Por muito tempo, historiadores acreditaram que para estabelecer os fatos bastaria submeter seus vestígios a uma série de procedimentos críticos que, basicamente, visavam saber quando, onde, por quem e por que foram produzidos. Ao menos enquanto ninguém apresentasse motivos para duvidar. Um certo ceticismo sobre esse procedimento o tornou insuficiente quando as perguntas eram mais complexas e quando perguntavam por que certos fatos ou os indícios que os sustentam haviam sobrevivido e outros não. Isso significa que a história que nós conhecemos, embora baseada em vestígios e fatos, não é absolutamente factual, porque é atravessada pelas razões e escolhas de alguém que produziu vestígios e disse alguma coisa sobre o que aconteceu. É claro que esses vestígios, materializados em textos, objetos e sons, são essenciais para o historiador. Mas, por si mesmos, eles não constituem a história. Não chegam até nós em estado “puro” e não respondem sozinhos sobre o que aconteceu. Por isso, podemos concordar com Carr quando afirma que os fatos não são como “peixes na peixaria”, pois “são como peixes nadando livremente num oceano vasto e algumas vezes inacessível”, e “o que o historiador pesca dependerá parcialmente da sorte, mas principalmente da parte do oceano em que ele prefere pescar e do molinete que ele usa - fatores estes que são naturalmente determinados pela qualidade de peixes que ele quer pegar” (CARR, 2002, p. 59).


Sendo assim, um fato se torna histórico na medida em que os(as) historiadores(as) o consideram relevante e seu status muda de acordo com a interpretação. Portanto, história é interpretação. E interpretações podem ser discutidas, comparadas, refutadas, confirmadas e revistas.


Voltando à pergunta inicial, o que acontece quando os(as) estudantes são frustrados na sua busca por saber o que de fato aconteceu? A expectativa é que a pergunta sobre os fatos se torne mais complexa e considere as interpretações e, também, o modo como os(as) historiadores trabalham para tornar o passado visível, tecendo uma trama ao contar a história e exibindo o percurso seguido ao dizer como sabem aquilo que dizem saber.

 
 

Referência


CARR, Edward Hallet. Que é história? 1a. ed. inglesa 1961. Trad. Lúcia Maria de Alvarenga. Revisão técnica: Maria Yedda Linhares. São Paulo: Paz e Terra, 2002. 8ª edição.

 


Rebeca Gontijo é professora de Teoria e Metodologia da História do Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro desde 2009. Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense.

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