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Tiros no rosto e na memória, ou como me senti naquela madrugada...



Fotografia: Elina Krima | Pexels


Na reta final da pesquisa de mestrado, as noites insones já eram comuns e escrever era algo fundamental àquela altura. Como objeto de pesquisa, me propus estudar como alguns grupos de mulheres e feministas se formaram na cidade do Natal/RN entre os anos 1978 – 1989 e o que isso significou na ordenação dos espaços públicos e políticos na cidade. Entre minhas fontes havia notícias, relatos e depoimentos sobre um caso muito debatido pela opinião pública: o assassinato de uma mulher pelo ex marido inconformado pela separação. Para ser sincera, fiquei até surpresa em ver aquele tipo de notícia com a repercussão que teve, pois naqueles anos os crimes de violência contra a mulher aconteciam aos montes e quase sempre caíam no ostracismo. No entanto, à medida que me debruçava sobre tal caso, ia conectando os fatos e o estilo do crime a outros episódios, inclusive aos de cunho nacional. As leituras dos jornais locais eram angustiantes e optei por não deixar esse caso nas notas de rodapé de minha dissertação, até porque, como vocês verão a seguir, minha revolta precisa, finalmente, ganhar forma de texto.


Caso I

Em dezembro de 1976, na Praia dos Ossos, em Búzios/Rio de Janeiro, a mineira e socialite Ângela Diniz foi morta com 4 tiros no rosto pelo então ex-namorado que, inconformado com a decisão do término do relacionamento, lhe retirou a vida. Doca Street, como era chamado, justificou algum tempo depois que cometeu o ato porque perdeu a cabeça. Naquela época, a tese da legítima defesa da honra foi utilizada pelos advogados de Doca na tentativa de inocentá-lo. A tese se alimentava do pensamento moralizador sobre as mulheres e conseguia sugerir, inúmeras vezes, a noção de que o réu, na verdade, era a vítima. A socióloga Heleieth Saffioti (2015, p.45) contextualiza o significado do termo da seguinte forma:


[...] homens continuam matando suas parceiras, às vezes com requinte de crueldade, esquartejando-as, ateando-lhes fogo, nelas atirando e as deixando tetraplégicas etc. O julgamento destes criminosos sofre, é óbvio, a influência dos sexismos reinantes na sociedade, que determina o levantamento de falsas acusações – devassa é a mais comum – contra a assassinada. A vítima é transformada em ré, procedimento este que consegue, muitas vezes, absolver o verdadeiro réu. Durante longo período, usava-se, com êxito, o argumento da legítima defesa da honra, como se esta não fosse algo pessoal e, desta forma, pudesse ser manchada por outrem [...].

Caso II

Em outubro de 1980, em Natal, no bairro de Igapó, região metropolitana da cidade, Avani foi surpreendida enquanto manobrava seu carro em um posto de gasolina. Ela procurou ajuda pois observou que estava sendo perseguida pelo ex-marido, mas não houve tempo. Tudo foi muito rápido e após 15 minutos agonizando dentro do seu carro, ela não resistiu. Vitimada por 4 tiros disparados à queima-roupa por Sebastião Miguel de Lima, o ex que não aceitou o fim daquela relação, conhecido como “Tabelião de Tangará”; O caso gerou repercussão midiática e os grupos de mulheres e feministas natalenses se manifestaram de muitas formas para que o assassino de Avani fosse preso e condenado. Mas não só isso: elas lutaram e se somaram às vozes de vários grupos em território nacional na busca por direitos políticos e no combate à ideia de que tais crimes tinham justificativa aceitável nos tribunais de todo o país.


Naquele período, os grupos de mulheres e movimentos feministas já vinham preocupados com o crescimento desses índices de crimes, principalmente no âmbito privado, já que a cultura machista moldou gerações inteiras a naturalizar violência dentro das relações matrimoniais. Elas estavam mais atentas e organizadas nesse sentido. O caso de Ângela Diniz foi um alerta que chamou a atenção em todo território nacional e atingiu vários grupos nas capitais e outras cidades. O slogan “quem ama não mata” foi trabalhado pelos grupos feministas como forma de campanha para os casos de violência contra a mulher.


***


Nos estudos clássicos sobre Memória, nomes como Pierre Nora e Paul Ricoeur fazem morada nas bibliografias dos cursos de História. Teoria, historiografia e método são colocados à mesa e, de maneira geral, conhecemos os diferentes significados desse fenômeno. É interessante perceber os esforços que Ricœur (2007) faz na construção das representações do passado e do poder que o esquecimento pode ter em determinadas sociedades. Enquanto Nora, ao defender que “há locais de memória porque não há mais meios de memória” (1997, p. 07), explica a importância dos lugares que são colocados como referências de passagens do passado que é dizível, mas não mais palpável. Suas interpretações entre memória e história costumam ser caminhos frutíferos quando entendemos os significados simbólicos de uma rua, praça, igreja, monumento, etc., como formas que constituem passados e narram experiências, além de servirem como mecanismos de construção de identidades espaciais.


Mas, para além dessas perspectivas teóricas, a memória é também uma ferramenta política. Esquecer e lembrar são duas faces de uma moeda no exercício frequente de nossas vidas, mesmo que não tenhamos muita consciência sobre isso. Sendo assim, será que podemos perceber e (des)naturalizar os usos políticos em nosso cotidiano?


É verdade que vários sujeitos/as, grupos e movimentos foram e são afetados/as pela problemática da instrumentalização da memória no apagamento de existências e resistências. Nos livros didáticos de história, por exemplo, mulheres, negros, indígenas, trabalhadores e LGBT’s, ainda aparecem timidamente, ou em textos pequenos, com seus protagonismos minimizados às margens e em notas de rodapé. Muito se tem feito para mudar isso, mas essa caminhada é longa e, por vezes, parece sensibilizar ou ser realizada apenas pelos grupos vulneráveis a esse tipo de violência. Este exemplo é apenas um diante de tantas iniciativas de projetos de silenciamentos.


Falando desses projetos de silenciamento, o nome de Constância Lima Duarte me vem à mente. Escritora e professora de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), ela dedicou boa parte de seus trabalhos na investigação de mecanismos de apagamento das mulheres na história literária feminina. Na verdade, foi através dela que tomei conhecimento de um termo que, embora faça muito sentido dentro de minha formação, não foi problematizado durante meus anos enquanto graduanda em História. Memoricídio, segundo Constância Duarte (2019, p. 10), é um conceito que: “... designa o processo de opressão e negação da participação da mulher ao longo da história”. O termo consegue ser facilmente encontrado dentro dos estudos nas áreas de Arquitetura e Patrimônio. Para mim, ele passou a ter outro peso e significado.


Para visualizar melhor essa questão, tomemos a literatura investigativa produzida pela bielorrussa Svetlana Aleksiévitch como uma realidade em ascensão. Ao longo das últimas décadas, narrativas que são frequentemente consideradas como "extra oficiais" foram colocadas em outra perspectiva. Em uma de suas obras, “A guerra não tem rosto de mulher”, publicada no Brasil em 2016, pela Companhia das Letras, a escritora ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura publicou relatos de mulheres soviéticas que foram combatentes durante a Segunda Guerra Mundial e que, normalmente, não aparecem nos livros de história. Foram tenentes, médicas, sapadoras de minas, franco-atiradoras, engenheiras militares, etc. Na perspectiva da autora, as experiências dessas mulheres nos oferecem uma outra dimensão sobre a guerra.


***


Caso III

[...] O crime. Armado, o homem chegou ao local de moto, entrou na loja sem tirar o capacete e anunciou o assalto. Outras mulheres que estavam no local foram para os fundos do estabelecimento. Ameaçada pelo criminoso, Renata foi em direção ao caixa, retirou a gaveta com dinheiro e a colocou em cima da bancada. Em seguida, ele apontou a arma em direção ao rosto de Renata, atirou e fugiu do local sem levar nada [...].

O trecho faz parte de uma matéria do portal G1 sobre um crime ocorrido em novembro de 2019, na cidade de São Miguel, Alto Oeste do Rio Grande do Norte. Renata Almeida foi morta com tiros em seu rosto e o principal suspeito do crime era o seu ex namorado, Paulo Roberto da Silva. O crime apresentava indícios de vingança por motivação de não aceitação do término do relacionamento por parte dele.


Neste momento, não tenho receio de afirmar que os tiros disparados pelos assassinos tinham também o propósito de aniquilar a ideia de existência dessas mulheres. Os tiros que mataram Ângela, Avani e Renata não apenas mataram o físico, mas também a memória delas. É uma dupla destruição. É a impossibilidade de serem veladas com seus rostos expostos. É o assassinato coletivo, público e chancelado no imaginário social. Não é minha intenção afirmar, no entanto, que feminicídios ocorrem sempre com tiros nos rostos das vítimas, mas é minimamente curioso notar como esse detalhe corresponde aos mecanismos de apagamento de memórias pois o rosto representa a forma de alguém.


Os casos de Ângela, Avani e Renata nos ajudam a perceber o pensamento de posse que esses sujeitos tinham a despeito de suas companheiras. Além disso, as duas primeiras vítimas, Ângela e Avani, foram duplamente violentadas pelo sistema judiciário, uma vez que as defesas de Doca e Sebastião usaram a tese da legítima defesa da honra na tentativa – vitoriosa – de justificar seus atos criminosos.


Quando resolvi jogar “tabelião Sebastião Miguel de Lima” no Google, tinha por finalidade descobrir o que lhe acontecera tantos anos depois, mas senti um soco no estômago e um gosto amargo na boca pelo que vi! Foi naquela madrugada, apesar do cansaço dos meus últimos dias de prazo para submeter minha dissertação de mestrado, que entendi como a memória não pode ser apenas teoria ou estudada por profissionais das humanidades sem considerar sua potência como determinante do que pode ser fixo, imortal, digno, do que merece homenagem e consideração em nosso dia-a-dia. Façamos um teste e observemos os lugares que frequentamos, passamos, residimos. Gostaria de propor a vocês que realizassem a mesma busca no Google para que possam compreender, enfim, o porquê da sensação do soco no estômago que senti naquela madrugada...

 
 

Referências


ALEKSIÉVITCH, Svetlana. A guerra não tem rosto de mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016.

DUARTE, Constância Lima. Nísia Floresta presente: uma brasileira ilustre. Natal: Mariana Hardi, 2019.

FERNANDES, Maria Rizolete. A história oficial omite, eu conto: mulheres em luta no RN de 1980 a 2000. Natal: EDUFRN, 2004.

RICŒUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora Unicamp, 2007.

SAFFIOTI, Heleieth. I. B. Gênero, patriarcado, violência. 2 ed. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2015.

 


Janaína Porto Sobreira é Licenciada, Bacharela e Mestra em História/UFRN. Desenvolve pesquisas sobre História das Mulheres, Feminismos, História Oral, Memória, Literatura feminina e feminista, Gênero, Arquivos, Memoriais e Patrimônio. É feminista, viciada em batom vermelho e atualmente professora substituta do departamento de História/UERN.

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