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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Reproduzir a vida, contestar a precarização

As mães vão às ruas



Faixa do Movimento Mães e Crias na Luta no 8 de março de 2020 - Rio de Janeiro (Arquivo do MMCL).


As ruas do Rio de Janeiro são ocupadas por demandas das mães há décadas. Como na Argentina surgiram as Madres de Plaza de Mayo, aqui também desaparecimentos forçados e mortes mobilizaram politicamente mães em plena ditadura, que tomaram espaços como os dos meios de comunicação para exigir justiça. A herança autoritária no regime democrático encontrou-se com a herança da resistência. Mães de assassinados em chacinas, operações policiais e outras rotinas das políticas de segurança pública no estado não se esqueceram de seus filhos e de cobrar responsabilização por suas mortes, dias, meses e anos depois.


O corpo materno foi às ruas para falar de nascimento em 2012, defendendo o parto em casa e com respeito pelas mães. Contudo, é a partir de 2015 que acontece um crescimento de protestos feministas no Brasil, para além do 08 de março. As propostas de retrocesso da legislação que regulamenta as possibilidades de abortamento no país (especialmente o PL 5069/2013, que tinha como autor o então presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha) foram rechaçadas publicamente por atores políticos estruturados, individualidades e novos coletivos. Essas manifestações se organizavam em alas, setores de recortes diversos de mulheres feministas, entre elas, as mães.


As mães começaram a se organizar para estarem com suas crianças pequenas ou ainda não nascidas nas ruas, ou seja, portando sua maternidade no corpo, visivelmente. Demandavam legalização do aborto, mais direitos, mais respeito. A politização neste cenário não vem a partir do filho (como no caso das mães enlutadas), mas, ao contrário, quer reafirmar a agência da mulher, que permanece na/apesar da mãe. A possibilidade da enunciação política por parte da mãe, uma vez aberta, permitiu a vocalização de outras pautas da mesma sujeita.


Em uma leitura benjaminiana, a ligação entre esses eventos não é cronológica ou meramente cronológica. A memória da construção política dos oprimidos é o fio pelo qual se movem e se conectam as experiências maternas nas ruas. Mães que falam de morte e nascimento, mães que se opõem à carestia e à violência são mães que se colocam contrárias à lógica da reprodução social no sistema capitalista.


Segundo dados recentes, a proporção de mães que chefiam lares no Brasil aumentou nos últimos anos, de 2001 a 2015, cresceu 105%, chegando a 42% em relação ao total de famílias do país. Só na região metropolitana de São Paulo (que em uma análise nacional guarda semelhanças com a realidade social do Rio de Janeiro), em 2019 quatro em cada dez famílias dependiam de mulheres, conforme levantamento da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Essas famílias têm renda mensal menor do que aquelas chefiadas por homens (quase 30% menos, em média), em razão da desigualdade salarial de gênero existente no país.


Mulheres desempregadas, ocupadas no mercado informal ou não, ou que têm empregos formais mal remunerados cuidam de seus corpos e dos que estão à sua volta, mantendo, portanto, a vida, de forma precarizada. Esse trabalho de produzir a vida, não pago, é performado após e em meio a outras jornadas. Considerando ainda que nos lares chefiados por homens há trabalho doméstico, de cuidado, de reprodução da vida sendo realizado por mulheres, é possível dizer que a mulher provê o ambiente que viabiliza o funcionamento da produção de valor capitalista.


Em meio a crises, sob governos de inspiração autoritária, como o de Jair Bolsonaro no Brasil, que atualmente tem nítidos traços fascistas (como o elogio da violência, a defesa de um modelo religioso e restrito de família, a propaganda massiva baseada em convicções não racionais), as mulheres são as que mais rapidamente perdem direitos e espaços de apoio por parte do Estado (em todas as suas esferas). A partir da utilização da justificativa da crise econômica, a austeridade se impõe com a espoliação de direitos das mulheres ou que têm impacto na vida das mulheres (reforma trabalhista, previdenciária) fazendo com que a reprodução social seja ainda mais pesada e suas responsabilidades recaiam de maneira quase que totalmente individualizada para elas, ou seja, sem compartilhamento efetivo com o poder público.


Como trabalhadoras em múltiplas frentes, as mulheres estão a um só tempo compondo a força de trabalho e a reproduzindo, ou seja, no exato ponto de inflexão da aparente divisão entre produção de valor e reprodução da vida na totalidade capitalista. As mulheres testemunham a castração de potencialidades em rotinas de jornadas de trabalho extenuantes e que distanciam quem trabalha de sua própria humanidade. As reivindicações das mulheres não são e não podem ser consideradas como luta secundária, pois se situam em ponto fundamental de denúncia do funcionamento do sistema capitalista. A quebra da lógica de operação da reprodução da vida produz a ruptura do próprio modo de produção, que dela depende.


Os movimentos mais recentes de mães, como o Movimento Mães e Crias na Luta (MMCL), não desenvolvem sua historicidade de forma orgânica e linear. A tarefa de estar nas ruas coletivamente com crianças, reivindicando passado e vislumbrando um outro futuro é enorme. Mas a tarefa de fazer a vida cotidianamente também é avassaladora e impossibilita a manutenção de uma existência pública ininterrupta. Os movimentos se forjam nas condições objetivas que se apresentam, mirando no impossível e fundamental: ser mulher sem correr o risco de morrer por isso; tornar-se mãe a partir de um desejo e não de uma obrigação; ter casa, emprego, comida, segurança; caminhar com as próprias crias vivas, com acesso a saúde, educação e cultura; enfileirar-se nas ruas de uma cidade acessível e antirracista.


Estudar movimentos complexos e potentes como os do feminismo materno, tendo como pano de fundo uma América Latina pós-colonial, é um fazer histórico que não pode desconsiderar os impactos da adoção de políticas neoliberais (levando em conta as gradações de cada país e região específica) com avanço da expansão da geração de valor a partir de expropriação de terras e regulação restritiva ao acesso a bens e serviços essenciais, que acontece a partir de crescente endividamento. A pesquisa militante, desenvolvida metodologicamente a partir dessa realidade, contempla o envolvimento ético de quem pesquisa com o que pesquisa, favorecendo a possibilidade de elaborações que sejam mais fiéis à completude dos movimentos e comprometidas com sua política e com padrões científicos.


A regulação neoliberal e a reprodução social capitalista encontram no direito mecanismos de viabilização da manutenção da vida como está: precarizada. Este ponto merece detida atenção: as mulheres em protesto, ao demandarem mais direitos, têm de enfrentar uma contradição, que é lidar com os limites do próprio direito (e da forma jurídica). O direito não é um campo neutro, aberto a disputa, não freia o avanço neoliberal sobre florestas, campo, cidade e corpos.


No caso da relação das mulheres do Brasil com o direito na atualidade, por exemplo, se pode observar que a existência de um tipo penal que designa a morte por preconceito de gênero, o feminicídio, não salva; os mecanismos criados pela Lei Maria da Penha, embora indispensáveis, são insuficientes e as estatísticas mostram a desproteção da vida (enquanto existência apenas, sem que se avaliem conjuntamente indicadores de qualidade de vida) das mulheres no país. Por outro lado, as recentes reformas da previdência e trabalhista contribuem diretamente para a piora da qualidade dessas vidas de mulheres, diminuindo a renda e a assistência estatal em caso de doença e/ou morte. A violência, ainda é preciso dizer, não está fora do direito e é a resposta (penal) padrão do estado para a repressão de vozes dissonantes nas ruas, para conter e ceifar os insolentes corpos negros que insistem em nascer e viver.


A descrição completa do cenário é pior, porém, porque se vive uma crise sanitária internacional ímpar, a da COVID-19. A pandemia evidencia a crise econômica que já estava em curso, enfatiza e potencializa a crise política brasileira e, como medida de contenção de contágio, impõe o isolamento de mulheres com seus agressores e/ou com toda a carga da reprodução social (da limpeza da casa à educação escolar à distância das crianças, passando, em alguns casos, pelo seu próprio home office: tudo acontece ao mesmo tempo, no mesmo lugar).


Para as mulheres que se organizam como mães feministas, ser mãe somente reproduzindo a força de trabalho não basta. É preciso viver bem, conferir um outro significado para a vida, além da preparação para o trabalho. A estratégia da greve de mulheres que se espalhou em alguns lugares do mundo nos últimos anos (com aderências na Polônia, nos Estados Unidos, Argentina e Brasil) terá de ser adequada à organização política e social pós-pandemia. E iniciativas como essas greves, de construção política entre a casa e a rua (não aludindo à diferenciação liberal público e privado, mas às aparentes separações interiores do sistema capitalista), que devem ocupar as agendas de pesquisa (e militância) dos movimentos feministas, dos movimentos sociais anticapitalistas, antifascistas, antirracistas.

 
 

Referências


BENJAMIN, Walter. O anjo da história. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.

BHATTACHARYA, Tithi (Org.). Social Reproduction Theory: Remapping class, recentering oppression. Londres: Pluto Press, 2017.

BRINGEL, B.; VARELLA, R.. A pesquisa militante na América Latina hoje: reflexões sobre as desigualdades e as possibilidades de produção de conhecimentos. Revista Digital De Direito Administrativo, 3(3), 2016, p. 474-489.

FERGUSON, Susan. Women and Work: feminism, labour and social reproduction. Londres: Pluto Press, 2020.

 


Gabriela Azevedo é doutoranda em Direito pela UERJ. Mestre em Direito pela UERJ (2016) e mestre em Direito pela PUC-Rio (2015). Bacharel em Direito pela UFRJ (2013) e bacharel e licenciada em História pela UNIRIO (2012). Foi advogada popular e coordenadora de projetos do Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) entre 2013 e 2015. É advogada e mãe do Eduardo (quase seis anos) e do Valentim (quase três anos).

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