HuMANAS: Pesquisadoras em Rede
Quem está disposto a ouvir?
Refletindo sobre aborto no Brasil
Marcela Boni Evangelista
Aline Beatriz Coutinho

No início dos anos 80, um caso semelhante ao do triste ocorrido esta semana mobilizou setores médicos, feministas e a sociedade em geral, sendo considerado um marco no debate sobre aborto legal no Brasil: uma menina de 13 anos, grávida por ter sido estuprada pelo padrasto, precisou de uma decisão judicial para obter o direito de acesso ao aborto legal - que somente conseguiu ser cumprido após uma peregrinação a vários hospitais, já que médicos/as se recusavam a realizar o procedimento. Após a publicização das sucessivas recusas na mídia, finalmente a vítima conseguiu obter acesso a um direito existente desde 1940. Qual não é nosso asco ao saber que 40 anos depois, a história se repete, com o caso de uma menina de 10 anos grávida após ter sido estuprada por seu tio? Hashtags se acumulam em nossas timelines e temos a sensação de que a “excepcionalidade” do episódio vai fazer com que as coisas mudem.
Será?
Vivemos em uma realidade historicamente enraizada de controle sobre os corpos das mulheres, sua sexualidade e reprodução, que se travestem de argumentos moralizantes, estigmatizando as pessoas que vivenciam experiências de aborto. Esta visão, que submete as mulheres a riscos indiscutíveis nos espaços público e privado, não reconhecendo sua humanidade e direitos, gera diversas violências de gênero, sendo a violência sexual uma delas. Dessa forma, infelizmente, o caso dessa menina de 10 anos grávida não é uma novidade. Crianças – principalmente meninas – são diariamente vítimas de abusos de diversas naturezas, sendo o abuso sexual certamente o mais inaceitável. O mais triste: os agressores, em sua imensa maioria homens, são pessoas próximas, sobretudo, familiares. Há inúmeras pesquisas que demonstram esta realidade de nossa sociedade: a cada 20 minutos, uma menina ou adolescente até 18 anos é estuprada no Brasil (sendo 54%, vítimas de até 13 anos), configurando-se em uma violência sistêmica e estrutural silenciosa.
No entanto, nesse momento marcado pelo rechaço à ciência e pela perseguição a quaisquer discussões que remetam à sexualidade, aparentemente só "acordamos" quando um episódio com tais desdobramentos chega ao público. O problema é que este "acordar" também demonstra o quanto nossa visão é rasa. Muito rapidamente o debate se voltou à questão do aborto, relegando a segundo plano a saúde física e mental da menina. Aliás, é também o aborto uma temática que é frequentemente silenciada, voltando à superfície do debate público somente quando situações-limite como esta vêm à tona.
O total desconhecimento da sociedade acerca dos dispositivos legais é inegável quando nos deparamos com a natureza dos argumentos que orientam a discussão. Abortar ou não? Tal pergunta jamais deveria ser feita, uma vez que temos uma legislação que garante o aborto de forma legal para este tipo de ocorrência. Evitar este debate seria, inclusive, importante para proteger a saúde mental da menina, vítima silenciosa dessa história.
Sabemos, contudo, que a delicadeza do tema requer atenção para aspectos que invariavelmente contrapõem dois "grupos": o "pró-vida" e o "pró-escolha", geralmente com argumentos permeados por questões religiosas e morais e não por noções relacionadas à autonomia, à saúde (mental e física) e ao direito. Supondo que o primeiro grupo se ampara na defesa da vida, perguntamos: vida de quem? A indignação frente à interrupção da gestação confere, por sua vez, espaço suficiente para tirar de cena o que está na origem da questão: a violência, o abuso, o estupro, a morte. Como se de tão naturalizadas, tais violações de direitos fossem aceitáveis perante algo de maior importância, a questão do aborto.
Mas a quem, de fato, incomoda o direito ao aborto?
A autonomia sexual e reprodutiva sempre foi alvo de controle, o que se exacerba em sociedades conservadoras, ou passando por período de retrocesso, como a nossa. A pergunta que fica é: alguém quer ouvir essas mulheres que procuram ou necessitam recorrer a um aborto? No caso da menina estuprada pelo tio, quem é ela? Alguém quer saber sua história, o que pensa ou sente?
E não basta dizer que por ser menor de idade e depender de responsáveis que falem por ela, a vítima não pode ser identificada ou acessada. É evidente a importância da garantia da segurança desta criança, mas, ainda assim, quem se importa de fato com ela ou tantas outras que passam pela mesma situação? Retornando ao caso ocorrido na década de 1980: alguém sabe quem é esta menina, o que lhe aconteceu ou o que gostaria de dizer sobre sua experiência?
Pois, em tempos de enfrentamento sobre lugares de fala, quem está disposto/a a ouvir?
#ViolênciaSexual #ViolênciaSexualContraMenores #Aborto #AutonomiaReprodutiva #DireitosReprodutivos
Marcela Boni Evangelista é feminista, professora da FEUSP, pesquisadora do GRUPEG-HIST e coordenadora do NEHO-USP.
