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Por outras imagens e outras histórias

A costura da memória de Rosana Paulino



Detalhe da instalação "Assentamento", de Rosana Paulino. Foto feita durante a exposição "A costura da Memória", no Museu de Arte do Rio.


Permita que eu fale e não as minhas cicatrizes Emicida - AmarElo (part. Majur e Pabllo Vittar), 2019

Em 2019, quando participamos da disciplina de História & Imagem, no Programa de Pós-graduação em História da UFRRJ [1], visitamos a exposição “Costura da Memória” como parte das atividades propostas no curso. As obras de Rosana Paulino – artista, mulher, preta e brasileira – focam no apagamento da cultura e memória africana em território brasileiro e abordam a relação entre a história pessoal da artista e o imaginário social e histórico do país. Seu trabalho evidencia um gesto que é especialmente relevante para nós que atuamos no campo acadêmico e educacional da história, pois nos instiga a refletir sobre as consequências da colonização na estigmatização dos corpos e na representação do passado-futuro dos povos periféricos.


Ao remeter, descobrir e tecer sua ascendência, como vemos ao longo de toda exposição, Paulino pensa o presente e acena para o futuro. Suas mãos bordaram na instalação “Bastidores” (1997) os olhos, as bocas e as gargantas das mulheres de sua própria família. O registro da violência e invisibilidade se percebe no bordado ríspido e duro do tecido, e apresenta seu próprio passado. Tecer é também o que faz Paulino com os fios de algodão e linho na instalação “Tecelãs” (2003) ao abordar as transformações da vida, dos ciclos animais e humanos e da sua própria hibridação animalesca. A artista retira de dentro do corpo de mulher-inseto (seu próprio corpo) o fio que irá suturar e costurar a memória de todo seu trabalho, rejeitando a impessoalidade científica. Suas obras são marcadas pelo afeto e pela possibilidade de transformação das coisas. Rosana Paulino, artista-historiadora, tece fios de tempo.



Assentamento: o rito que incorpora uma outra história


Na instalação “Assentamento” (2013), as desconfortáveis imagens da mulher nua capturada por Louis Agassiz, naturalista europeu e autor de teorias eugenistas do século XIX, são (re)utilizadas e ressignificadas por Rosana Paulino. A artista costura (ou melhor, sutura) a imagem de forma irregular e violenta. Este gesto revela que mesmo nas condições de retirada forçada de toda a condição humana das populações negras subjugadas pelo domínio colonial, algo foi remontado e assentado pela artista contra todas as expectativas. Ao intervir na imagem através do afeto, Paulino interrompe seu aspecto cientificista, doloroso e desumanizante. A potência das obras encontra-se exatamente nessa desnaturalização da imagética colonial e na construção de uma nova instância temporal que carrega memórias e possibilidades.


Rosana Paulino em um ato revoltoso, insubordinado por assim dizer, subverte a imagem, pois recusa a episteme que atravessa as capturas de Agassiz e propõe um novo olhar. Dá alento àquela figura e, simbolicamente, descostura seus lábios silenciados pela história dos vencedores, para que do mundo dos mortos seja possível contar uma outra história e perpetuar uma outra herança. Na exposição somos incessantemente lembrados que os mortos também não estão seguros diante do inimigo (Benjamin, 1940, Tese VI). A artista age em uma tripla temporalidade em que simultaneamente, em um ato coordenado e seguro, questiona, ressuscita e transforma o passado, olhando para o tempo e para a imagem com outras referências. O outrora invade o agora, impactando o presente e acenando para um futuro inconformado e transformador.


Assentamento é um rito elementar em religiões afro-brasileiras, sobretudo no candomblé. Assentar (ou fazer tomar assento) significa colocar algo ou alguém sobre uma fundação e ajustar suas energias, que serão usadas para os mais diversos fins. Nos assentamentos sagrados do candomblé são utilizados fetiches (objetos sagrados que remetem ao orixá), que têm força de canalização e atributos sobrenaturais. O conjunto desses objetos, acrescidos de rituais, criam um campo energético poderoso que possibilita a formação de um corpo físico para seres que estão no plano astral.


Cada assentamento simboliza a energia, captada na natureza, advinda dos orixás. A partir dele, as forças divinas emanam seu axé para os adeptos da religião e crentes dessas sacralidades. A artista cria uma sensível comunicação na qual é possível ouvir os ruídos de outros tempos que ainda nos perpassam. Através da reinterpretação da imagem de Agassiz, Paulino constrói seu assentamento com fetiches e símbolos (as costuras, o coração, as raízes) e trabalha com as múltiplas temporalidades (sua temporalidade presente e a temporalidade passada e ainda viva da imagem) e planos (o plano dos vivos e dos mortos), enquanto nós, que temos a possibilidade de observar a obra, captamos sua força, seu axé.


As cinzas do trabalho eugenista de Agassiz são, para Rosana Paulino, fogo. Na verdade, esse é um incêndio de múltiplos tempos, que carrega dor, conquista e que faz dos vestígios do passado uma velha luta presente. A fotografia da mulher desnuda funcionou como freio ao desaparecimento do qual Paulino faz lembrar, e lembrar é um ímpeto para a luta. Conforme afirma a artista, é através dessas imagens que podemos discutir questões como preconceito racial, subalternidade e dominação cultural. Devemos olhá-las, portanto, com outros olhos (Paulino, 2019). Os contrastes temporais da montagem podem ser, assim, gestos de resistência.


Quando um grupo social marginalizado, como o que Rosana Paulino representa, adentra os espaços de construção de narrativas e bens culturais, novas formas de ver e construir o passado são inauguradas. Esses sujeitos não veem os tempos idos e sua ancestralidade como meros objetos a serem analisados, pois ocorre a identificação de uma dor em comum e essa sensibilidade exige novas possibilidades de construção do conhecimento. Logo, a democratização do acesso aos espaços, sobretudo o universitário, operou como um corte profundo na construção dos saberes em diversas áreas, com proporções ainda não conhecidas.


Rosana Paulino opera com sua arte nas rachaduras da história, evidenciando seus rasgões, seus remendos e suturas forçadas e mostrando os limites de uma sociedade que teme recordar e, portanto, adoece nas violências da amnésia. Apesar disso, como diria Eduardo Galeano (2005, p. 110), “não existe tapete que possa ocultar a sujeira da memória”. E o desejo de Paulino parece ser levantar toda a poeira, forçando a história a ser passada a limpo.

 

Notas


[1] A disciplina de História & Imagem deu origem ao Entremeios, grupo de pesquisa que procura trabalhar a articulação entre a operação historiográfica e a operação artística a partir da análise do trabalho de artistas visuais e de teóricos da imagem que abordam reflexões sobre história e memória. Consultar a página do grupo.

 
 

Referências


BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de historia. 1940.

GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Editora L&PM, 2005.

PAULINO, Rosana. História natural de um suposto paraíso tropical. Revista Serrote, ed. 31, Março, 2019.

 


Entremeios é um grupo que procura trabalhar a articulação entre a operação historiográfica e a operação artística, a partir da análise do trabalho de artistas visuais e de teóricos da imagem que abordam reflexões sobre história e memória.

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