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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Pelos sussurros que nos encontramos

Aproximações entre Xinran e Simone de Beauvoir



Reprodução: Carl Newman | “Nu Feminino” (1915) | Smithsonian American Art Museum


Recentemente, me deparei novamente com o livro de Xinran, As boas mulheres da China (2007). Quase como um mero acaso, as duas vezes que me aproximei da obra, foi por sugestão de mulheres: da primeira vez, presente de uma amiga; da segunda, através de um grupo de leitura de livros de autoria feminina. Rever sua obra e ainda mais, na companhia de outres leitores, me animou logo de início. Porém, mal sabia eu que outros “acasos” atravessariam minhas leituras. Fiquei surpresa ao escutar de minhas colegas que o livro chegou a algumas delas, pela indicação de uma outra mulher – mãe, irmã, amiga, colega, conhecida. Talvez a sutil coincidência seja em razão da delicadeza com que Xinran trata de temas caros ao universo feminino como maternidade, relações homoafetivas, família, loucura, violências físicas e psicológicas.


Por entre relatos de cunho pessoal e outros recebidos por meio de cartas, gravações e depoimentos, a autora nos apresenta histórias de mulheres chinesas que sofreram tanto as coerções e imposições de sua sociedade quanto as violências praticadas, incentivadas pelo regime político vigente. Cada história, inicialmente, narrada por Xinran em seu programa de rádio, “Palavras da brisa noturna” (1989-1997), poderia suscitar diversas aberturas para pensarmos na atual situação da mulher na China, ou ainda, no Brasil diante dos recorrentes casos de violência que diariamente acompanhamos nos meios de comunicação.


Contudo, chamo a atenção para outro aspecto: se na primeira vez que li As boas mulheres da China, estava, completamente, envolvida pelos relatos; agora me tocou a forma como essas mulheres chinesas se sentiram confortáveis para revelar seus segredos, mágoas profundas, dores quase inenarráveis a uma desconhecida. A popularidade do programa, sem dúvida, contribuiu para que mais relatos chegassem a Xinran, como também uma parte das histórias foi recolhida pela própria autora durante suas atividades de campo como jornalista. Fatores que não alteram a distância entre a autora e suas interlocutoras. Digo: Xinran não convivia com essas mulheres, não sabia de seu dia-a-dia, do tempo de suas dores, dos amargores de sua existência. Apenas compartilhou breves momentos com elas, ou em alguns casos, nem teve a oportunidade de as conhecer, pois recebeu seus relatos por meio de correspondências ou de gravações deixadas na secretária eletrônica do estúdio da rádio.


Me pergunto como se construiu a empatia, simpatia dessas mulheres por Xinran? Assim como elas, a autora era mulher e, desse modo, entenderia suas dores e se compadeceria de seus lamentos? Ou Xinran, lhes oferecia apenas – e talvez não somente – o conforto da escuta? Ou ainda, ao tratar em seu programa de assuntos voltados ao universo feminino, a narradora abriu feridas, frestas, desvelou o que há anos era carregado em silêncio, ou mesmo, não era percebido, sentido por estas mulheres como uma violência, como uma dor?


Como pesquisadora da obra autobiográfica de Simone de Beauvoir, não pude deixar de lembrar das cartas recebidas de suas leitoras, logo após a publicação d’O Segundo Sexo, em 1949. Xingada, ironizada, debochada por grande parte da imprensa por ter publicado tal livro, inclusive, as críticas eram menos endereçadas ao problema filosófico disposto no livro – “o que é uma mulher?” – do que em relação à personalidade de Beauvoir: escreveu esta obra, pois era “mal-fodida”, não tinha filhos, recusava a instituição do matrimônio e/ou pela má influência de seu companheiro, Jean-Paul Sartre. Apesar das críticas e acusações, seu livro foi e ainda é, uma das referências para os estudos de gênero; mas também, ele despertou para aquelas mulheres que liam no calor do momento, um alento, um conforto, um entendimento de si. Saber que o que sentiam, as opressões vivenciadas diariamente e o modo como foram criadas, não era algo natural, normal, pelo contrário, fora construído, ao longo do tempo, pela literatura, pelas reflexões filosóficas e pelos discursos médicos; lhes possibilitou questionar a sua condição de mulher.


Recorda-se Beauvoir em sua autobiografia:

Elas encontraram nas minhas exposições um auxílio contra as imagens delas mesmas que as revoltavam, contra mitos que as esmagavam; descobriram que suas dificuldades não refletiam uma desgraça singular, mas uma condição geral; essa descoberta evitou que elas se desprezassem, e algumas ali buscavam a força para lutar (Beauvoir, 2017, p. 240).

São processos de reconhecimento de si que a filósofa francesa foi tomando consciência pelas cartas de suas leitoras. Aliás, algumas dessas mulheres mantiveram uma correspondência ativa com Beauvoir durante anos, pedindo-lhe conselhos e dando detalhes sobre seus traumas e suas experiências diárias. Histórias de vida que, posteriormente, auxiliaram a autora na composição de suas personagens femininas. Pois, dizia Simone, como escritores deveríamos retratar personagens reais, não heróis ou heroínas; personagens que por meio de suas histórias trágicas, comoventes, tristes, pudessem suscitar nos leitores, reflexões acerca de suas práticas cotidianas.


Ainda que o projeto literário e autobiográfico de Beauvoir venha ao encontro da filosofia existencialista – tema que prefiro deixar de lado nestas reflexões -, não podemos deixar de notar que O Segundo Sexo despertou, principalmente, entre o público feminino, reflexões sobre si. Uma abertura para pensar – mesmo que num primeiro momento, negando ou refutando a autora –, sobre a sua condição. E para aquelas mulheres que se sentiram instigadas pelas palavras de Beauvoir, despertou-se a coragem de expor os problemas e dilemas que estavam enfrentando.


Vejo nessa acolhida da obra de Simone de Beauvoir pelo público feminino um processo semelhante ao que me levou a ler a obra de Xinran e a prestar a atenção nas mulheres que narravam a sua história de vida. Quanto mais a jornalista chinesa lia e compartilhava os depoimentos, mais mulheres escreviam ao programa e lhe procuravam para contar das tristes marcas impostas ao seu gênero.


Talvez Beauvoir, Xinran e tantas outras escritoras, ao tecer linhas tão sensíveis ao universo feminino, nos revelem ângulos, perspectivas e formas de narrar e contar sobre nossas experiências que nos motive a falar de dores profundas, medos e angústias. Na ânsia que um dia, possamos não mais sussurrar nossos dilemas, mas encontrar conforto a eles no seio da sociedade.

 
 

Referências


BEAUVOIR, Simone de. A força das coisas. vol. 1. Trad. Maria Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017.

___________________. O segundo sexo. vol. 1 e 2. Trad. Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2019

XINRAN. As boas mulheres da China. Trad. Manoel Paulo Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 


Thainã T. Cardinalli é formada em Ciências Sociais e, atualmente, doutoranda em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH-Unicamp).

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