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Para que serve a História em um mundo em profunda transformação?



Foto de Martin Péchy


A ascensão de novo tempo tem sido apontada por cientistas e pensadores das humanidades. O antropoceno é descrito como era de mudanças sem precedentes em que a vida humana na terra se tornou uma força comparável às forças geológicas, sendo capaz de alterar os destinos do planeta como um todo. Além deste aspecto climático, entretanto, a compreensão disseminada de vivermos em um momento histórico gravemente específico possui também raízes de cunho imediatamente político. O mundo passa por uma onda de “desdemocratização”, assinala o relatório da DeMaX (Democracy Matrix), que afere mais de 200 itens de liberdade política, igualdade e controle legal em 179 países desde 1900. O documento indica para 2019 um retrocesso nos índices democráticos de um número sem precedentes de países, havendo hoje mais “democracias deficientes” e “menos democracias funcionais”. Ainda segundo o estudo, pouco mais de um quarto da população mundial vive hoje em democracias. Não se trata de algo banal. A crise nas democracias representativas e a ascensão dos neofascismos, tendo como fenômenos correlatos os negacionismos científicos e a crise geral dos parâmetros de verdade e informação públicas também constituem abalos em certa estabilidade que sustenta ainda hoje uma certa percepção de que viveríamos um fim da história ou um momento “presentista”. Acredito que esse quadro de crise atual aponta para a necessidade de reordenação da História. Qual seria a função da história como disciplina nessa nova situação?


Voltemos por um momento ao contexto do surgimento do saber histórico moderno. As grandes revoluções e conflitos do fim do século XVIII e século XIX colocaram termo a governos absolutistas e colonialistas. Linguagens e saberes tradicionais já não pareciam mais capazes de fornecer uma estabilização de sentido às transformações em curso. Primeiro, como ramo da filosofia, depois, como saber cada vez mais especializado, a História foi uma das respostas a esta experiência de estar perdido numa nova época cujos fundamentos e dinâmica ainda não eram conhecidos por completo. Tal compreensão de viver em uma nova época ou “um novo tempo” qualitativamente diverso dos períodos anteriores foi o impulsionador de uma perspectiva universalista de mudança histórica que deu origem a esse saber que conhecemos modernamente como “história”. Uma vez pensando a si própria como novidade histórica, essa modernidade pôde então constituir um saber capaz de pensar o tempo não mais em termos meramente aditivos, e a história não mais em termos de repetição ou continuidade, mas sim como movimento universal de produção de diferentes épocas históricas, ordenados na perspectiva da mudança e do progresso.


O saber histórico moderno foi igualmente uma resposta intelectual à "modernidade epistemológica", que, segundo Hans Ulrich Gumbrecht, funda a compreensão de que as representações que fazemos da realidade não são fruto de uma posição privilegiada capaz de definir a verdade, mas do ponto de vista de cada observador. Trata-se, para Gumbrecht, na linha aberta por Foucault, da descoberta do "observador de segunda ordem”, um novo sujeito de conhecimento, que, ao observar um objeto, observa ao mesmo tempo a si mesmo e ao ato de conhecimento que realiza. Essa crise representacional, que abalou o sujeito solar cartesiano e o realismo imediatista, teria aberto uma situação de desestabilização em que diversas representações de um mesmo objeto seriam possíveis, abalando noções anteriores de verdade e conhecimento. Tal crise epistêmica saber europeu se deu no auge do processo de colonização europeu sobre os povos do globo, intensificando o já em curso embate violento da cultura europeia com outros sujeitos de conhecimento e outras formas de ver o mundo. Diante deste quadro, saber histórico moderno em gestação teve a função de trazer uma nova forma de estabilidade: através da narrativa histórica essas diferenças puderam ser elucidadas como momentos de um mundo em transformação evolutiva e a realidade pîde ser atual pôde ser lida pela consciência europeia dominante como marcada pela convivência sincrônica de povos e regiões do globo em diferentes etapas de desenvolvimento histórico.


Não é exagero dizer, portanto, que a História foi a resposta intelectual e política a um mundo em violenta transformação. Podemos contar com um saber histórico capaz de acolher e estabilizar, embora por outras vias, o sentido das mudanças? O mundo atual, de certa forma, possui semelhanças com o mundo em que o saber histórico moderno se desenvolveu. Assistimos, hoje, a uma explosão de narrativas, visões de mundo e interpretações sobre os fatos passados e presentes, movimento, especialmente fomentado nas redes sociais. Cada vez mais os “passados práticos”, isto é, discursos sobre o passado não formalizados e controlados pelas regras disciplinares, mas pela dinâmica política e cultural da memória, do entretenimento e da informação rápida, ganham relevo na cena pública. A intensa disputa política na atualidade traduz-se hoje especialmente em processos públicos de disputa interpretativa sobre história, o que tem obrigado a disciplina a novos movimentos de revisão de seu papel social.


Tendo a concordar com a proposta de que, diante desses cenários, a História possa se constituir como como um espaço de acolhimento e debate democráticos dos múltiplos saberes históricos produzidos e veiculados. Diante dos desafios atuais, e nisto concordo com Francisco Gouveia, Géssica Guimarães Gaio e Thiago Lima Nicodemo, uma historiografia que simplesmente tematize o presente, sendo preciso radicalizar a abertura para a contingência no sentido de fazer do “fazer histórico” e da aula de história um lugar de encontro, mais democratizado e menos elitista. Para tanto, é urgente revisar criticamente não somente os protocolos de pesquisa, repertórios e temas, mas especialmente as formas de comunicação com o público. Não seria mais suficiente, como aponta Fernando Nicolazzi, a aposta numa reflexão puramente “epistemológica”, sendo fundamental também repensar as formas de circulação e recepção do conhecimento produzido e o papel social do historiador nas disputas pelo passado. É preciso, como diz Arthur Lima de Ávila, transformar os espaços da historiografia numa grande arena de discussão sobre o passado, oferecendo ao público democraticamente as ferramentas críticas desenvolvidas pela ciência histórica.


Mas como proceder, diante do fato de que muitas dessas narrativas históricas e visões de mundo são antidemocráticas, reacionárias, não raro contrárias à própria existência da universidade pública e das humanidades? Bem, sabemos que diante dos fascismos e colonialismos do século XX, a Historiografia realizou um processo de desconstrução das bases epistêmicas e políticas que sustentaram a disciplina. Elemento fundamental da sociedade que produziu tamanho desastre, o projeto de político e epistemológico da ilustração foi severamente criticado. Porém, nesse processo necessário e importante de crítica da cultura ocidental, como nos lembra Chantal Mouffe, alguns elementos da concepção política da ilustração fundamentais para o nosso mundo foram profundamente desacreditados. Haveria para a autora um elemento a ser mantido, desde que submetido à à uma radical revisão o próprio projeto de uma sociedade democrática. Não seria exagero dizer que a disciplina renunciou ao longo do século XX especialmente à pretensão de vincular-se a qualquer visão política, tornando-se cada vez mais especializada, acadêmica, menos imaginativa e popular. Porém, acredito, ainda me valendo das reflexões de Mouffe, que, se a História quiser ter um papel no mundo atual em profunda e acelerada transformação, servindo como espaço debate, mediação e estabilização democrática de significados nesse novo momento, precisará assumir seu vínculo consciente, expresso sem rodeios, a uma imaginação democrática radical e pluralista.

 
 

Referências


AVILA, Arthur Lima de. Indisciplinando a historiografia: do passado histórico ao passado prático, da crise à crítica. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 18, p. 35-49, jan./jun. 2018.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Modernização dos sentidos. São Paulo: Ed. 34, 1998.

MOUFFE, Chantal. The Return of the Political. London: Verso. 1993.

NICOLAZZI, Fernando. Muito além das virtudes epistêmicas. O historiador público em um mundo não linear. Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 18, p. 18-34, jan./jun. 2018.

SIMON, Zoltan Boldizsar. The Epochal Event. Transformations in the Entangled Human, Technological, and Natural Worlds. London: Palgrave, 2020.

SOUZA, Francisco Gouvêa de; GAIO, Géssica Guimarães; NICODEMO, Thiago Lima. Uma lágrima sobre a cicatriz: O desmonte da Universidade pública como desafio à reflexão histórica (#UERJResiste). Revista Maracanan, Rio de Janeiro, n. 17, p. 71-87, jul./dez. 2017.

WHITE, Hayden. The Practical past. Evanston, Illinois: Northwestern University Press, 2014.

 


Luisa Rauter Pereira é Professora e Pesquisadora nas áreas de Teoria da História e História da Historiografia da Universidade Federal de Ouro Preto.

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