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O Tempo em Prática e a Memória que Habita Nele



Foto de Martin Péchy



Qual seu nome? De qual cidade você é?

Todos já sabem (até alguns que ainda não chegaram de fato já sabem o que vai acontecer) que algumas das perguntas iniciais nas salas de Introdução ao Estudo da História servem para que todos se tornem menos estranhos. O acordo de que vamos trabalhar juntos começa a ser desenhado ali, naquela conversa sobre o quem e o onde dos e das componentes das turmas de primeiro período. São esses encontros os primeiros contatos da maior parte dos alunos e das alunas com a Universidade e, entre um antes e um depois, vivem um momento de grande instabilidade, em que ‘são e que não são mais alguém’, como provoca Agamben, dirigindo-se à definição que Hegel mobiliza do tempo: “é o que não é e não é o que é”, em Infância e História.

Os deslocamentos espaciais são realizados entre cidades no mesmo estado ou entre estados e uma nova cidade será o chão dessas trajetórias por um tempo bastante variado, mas nunca curto. Cada cidade descrita, naquelas aulas, aparece através de um professor do Ensino Médio ou do Fundamental, ou de um avô, um tio, uma tia; talvez a mãe ou o pai apareçam (sobretudo pontuando a partida), e esses sujeitos e espaços sintetizam memórias escolares importantes, uma possível educação histórica. No decorrer das falas, as memórias, vividas naqueles momentos pelas lembranças, vão se somando e alimentando um certo espaço construído e pronto para ser constantemente trabalhado, um espaço de acúmulos, visto a partir de uma ruptura. Um (novo) espaço que modificará outros espaços, menos ou mais próximos, no tempo, desses e dessas estudantes. Os vários tempos (esses inúmeros antes e depois que pulsam) e também inúmeros espaços que constroem aquele determinado presente (na cidade nova, na Universidade e na sala de aula) se articulam naquilo que Certeau propõe como uma espécie de arte da memória e ao momento específico, que chama de ocasião: é uma ‘prática do tempo’.

Nas respostas e nas muitas outras perguntas que vão surgindo, a dinâmica entre passado e presente se coloca como o desafio de compreensão do que fazem ali, do porquê da escolha de cada um. Quais os limites de cada um(a), passado e presente e como os alunos e alunas iniciantes costumavam tocar essa relação? Para responder a essa(s) pergunta(s), eles e elas, já intrigados, lançam tentativas: “o ontem responde o hoje”, “precisamos saber do ontem pra não cometer os mesmos erros”. As respostas vão em direção, normalmente, a uma relação especular entre passado e presente, e a uma forma estrita de causa e efeito. Nas perguntas que seguem a essas conversas, os alunos e alunas encontram-se com uma noção e outras tantas inquietações: “por que então vemos repetidas certas ações?”, “o que diferencia um acontecimento de outro?” Está criado, assim, o solo para que se trabalhe a noção de historicidade, mas o caminho é bastante longo. Serão necessárias ainda outras tantas perguntas e outras tantas respostas antes dessa noção ser apreendida até o fim do semestre. Um dos ângulos possíveis para olhar para essa relação entre tempo, memória e espaço vem do texto de Judith Butler, cuja tradução no Brasil foi publicada pela editora n-1. Nele, Butler discorre sobre os traços que partilhamos no mundo, entre pessoas e objetos. Os traços vão sendo impressos nos objetos que circulam, que tocamos e transmitem algo. No momento atual, podem transmitir algo letal para quem porta – trabalhadores e trabalhadoras – e para quem recebe os objetos. A ocasião é um nó, certamente, como propôs Certeau, entre o que é visível e o que é invisível, entre o que trazemos do passado e o que vivemos no instante. O fluxo é permanente entre as pessoas, entre as coisas e entre os tempos. Começamos, assim, a busca por definições.

O espaço produzido desde o primeiro dia de aula com os alunos e as alunas iniciantes na graduação em História inaugura um fazer historiográfico, através do olhar sobre a experiência do vivido; os traços (de Butler) e as passagens (de Certeau) que essas novas práticas imprimem no espaço através da(s) memória(s). Uma das primeiras noções que preenche o início do curso, então, trata da comunicação entre os mundos do passado e do presente, e que é possibilitada pela narrativa historiadora, iniciada com a habitação do tempo.

 
 

Referências


AGAMBEN, Giorgio. Infância e História. Destruição da experiência e origem da história. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: editora UFMG, 2005, p. 117.

BUTLER, Judith. Traços humanos nas superfícies do mundo. Texto 042. Tradução de André Arias e Clara Barzaghi. São Paulo: n-1 Edições, 2020. Disponível em:

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Edição estabelecida e apresentada por Luce Giard. Petrópolis: Vozes, 1994.

 


Helena Miranda Mollo é professora de Teoria e História da Historiografia no Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP).

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