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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

O Permanente da Olga



Da esquerda para a direita: Olga Pantaleão (1ª), uma das fundadoras da FFCL de Marília, e Maria Conceição Vicente de Carvalho (3º).

Foto: Acervo de Osmar Pantaleão | BLAY & LANG. Mulheres na USP. São Paulo: Humanitas, 2004, p. 115.


I

Olga Pantaleão foi uma das fundadoras do curso de História da Universidade Estadual Paulista (UNESP na cidade de Marília)[1]. Sendo aluna das primeiras turmas da graduação universitária em História, começou sua carreira como assistente de Jean Gagé, um dos professores franceses que vieram ocupar a cadeira de História da Civilização no curso de História e Geografia da USP. Diz ela que havia sido contratada como 1ª assistente da cadeira de História Geral, do setor de História Moderna e Contemporânea, “indicada pelo professor Jean Gagé, da Missão Francesa, o qual sempre me deu total apoio.” (PANTALEÃO, 2004, p. 112)


Quando Gagé partiu do Brasil de volta à França, em 1946, Olga assumiu seu lugar na cadeira de História Geral. Mas as coisas não foram tranquilas. Segundo Olga,

Então as coisas começaram a mudar. Uma reação masculina contra as mulheres começou a se manifestar por força de vários fatores (...). Durante quase um ano, de julho de 1946 a junho de 1947, mais uma mulher, eu mesma, pode aparecer nesse quadro, regendo interinamente a Cadeira de História da Civilização Moderna e Contemporânea. Durou pouco tempo: por pressão e ação do grupo masculino dominante no curso de Geografia e História tive de deixar a Faculdade, tendo feito o restante de minha carreira fora da USP. (PANTALEÃO, 2004, p. 112-114)

Essa pressão e ação de que fala Olga ficaram registradas na correspondência pessoal de Eurípedes Simões de Paula (professor de História Antiga e Medieval no mesmo curso) com Cruz Costa (que veio a ser professor no curso de Filosofia na USP) e Pedro Moacyr Campos (professor de História Antiga e Medieval da mesma universidade) entre os anos de 1944 e 1945 enquanto servia na Europa durante a Segunda Guerra Mundial. Pelas notícias que Costa e Campos dão a Eurípedes, ficamos sabendo da concorrência que havia entre Eduardo França – conhecido por uma certa memória acadêmica e disciplinar como herdeiro de Braudel no Brasil – e Pantaleão. Tampouco se esconde a torcida deles dois por Eduardo d’Oliveira França, que segundo suas opiniões, teria mais competência para ocupar a tal da cadeira de História da Civilização Moderna e Contemporânea. Em outubro de 1944, Pedro Moacyr informava a Eurípedes que: “A Olga ainda não defendeu tese, e o França pensa em fazê-lo no princípio do ano que vem. Penso que ele leciona demais, o que não permitiu que estivesse, até agora, com o seu trabalho terminado.”[2]


Em novembro, Cruz Costa manda carta informando sobre a defesa de Olga, deixando transparecer seu descrédito em relação à tese:

D. Olga é doutora. Defendeu tese e estudou, na mesma, uma história qualquer de comércio da Inglaterra com a América Hespanhola no século não sei bem quanto. Não assisti aos exames: é que prefiro ficar em casa a ler, e não enfiar o nariz por lá. Anda um pouco fedorento aquilo. Soube mais que meteram a lenha na tese: o Ellis e o Astrô. Não sei se têm razão. Como já disse, - não assisti e sem ser de corpo presente, não afirmo nada. Há os que são pró e os que são contra. Eu banco o cético. Cruz Costa. p.s.: a Olga tirou as seguintes notas: Ellis - 7; Gagé - 10, Monbeig - 9; Astrô - 7,5; Swann – 9.[3]

Em dezembro, comentando ainda a defesa de Olga, Cruz Costa explicita sua torcida: “Pois eu não é que não sabia que a Pantaleão se havia doutorado! Deram-lhe uma nota regular. E vivem a comentar. Eu aliás, sou torcedor do França. O França é que devia ficar com a cadeira. Enfim, parece que o França vai afinal fazer o doutoramento em março.”[4]

A próxima carta de Pedro Moacyr mostra um França que precisava apressar o ritmo do trabalho: “O fato de Olga tornar-se doutora, fez com que o França se apressasse e resolvesse defender também a sua tese, que aliás, parece estar ótima.”[5] Por um motivo que Cruz Costa vai levantar primeiro: “Naturalmente nós todos preferimos que a futura vaga do Gagé seja preenchida pelo França. É homem, é amigo. Isso de faculdade com catedráticos femininos não me parece coisa séria. Salvo para as exceções e, - aqui entre nós - a Olga nada tem de excepcional.”[6]


Pedro Moacyr estava diretamente interessado no doutoramento de França pois, pelo visto, estaria aberta a possibilidade de ele próprio assumir a assistência de Antiga e Medieval uma vez que França se mudaria para Moderna e Contemporânea:

Lá na Faculdade vai indo tudo como de costume. Apenas nós - o Ellis e eu - estamos preocupados com o França: ele não se resolve a defender a tese, e, sem isso, não poderá concorrer com a Olga à vaga que será aberta com a ida do Gagé em outubro. O Sr. compreende bem que eu, que estou direta e vitalmente interessado no caso, - preocupo-me bastante com isto. Talvez que, se o Sr. chegasse daqui a uns dois meses, o França resolvesse andar mais depressa e pudesse se doutorar até outubro. Mas já estamos em fins de maio.[7]

A concorrência e a tensão para com Olga Pantaleão se manifestava até mesmo nos comentários sobre a aparência pessoal. Em uma de suas cartas, Pedro Moacyr revela seu pendor para assuntos capilares. Informa a Eurípedes que: “Quanto ao mais, no nosso gabinete, vai tudo como de costume, com uma única alteração: a Olga fez permanente.”[8]



II

A fofoca de Pedro Moacyr – e é com algum prazer que chamo ela aqui de fofoca me faz recorrer ao livro da Bonnie Smith, Gênero e História (2003). Dentre outras coisas, Smith propõe que a sociabilização de meninos/homens e meninas/mulheres compôs, ao longo do século XIX, também as virtudes e regras do ofício de fazer História. Assim é que

a ciência histórica a partir do gênero, [ao] privilegia[r] o masculino sobre o feminino e ao contrastar especificamente verdade masculina com falsidade feminina, profundidade masculina com superficialidade feminina, acontecimentos masculinos importantes com fatos femininos triviais, a transcendência masculina com a corporificação feminina como parte das vantagens do profissionalismo. (p. 150)

Segundo o Censo da Educação Superior de 2018, o mais recente disponível no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), dentre os professores universitários no país em exercício e afastados, num total de 397.893, 213.814 são homens e 184.079 são mulheres (53,7% x 46,3). Ainda que a rede privada possua o maior número de docentes (214.224 x os 183.669 da universidade pública), nela, a distribuição entre os gêneros parece ser um pouco mais equânime: são 113.006 homens e 101.218 (52,7% x 47,3%), ao passo que na universidade pública, o contraste é ligeiramente maior: são 100.808 homens para 82.861 mulheres (54,8% x 45,2%).[9]


Já vamos para quase cem anos de constituição do campo universitário em História no Brasil e apesar dos números acima indicarem uma aproximação no acesso aos postos de professores universitários, a sensação comum entre várias de nós, e que inclusive fundamentou a criação do HuMANAS, é de que o permanente da Olga – com perdão do trocadilho rasteiro – permanece. Os argumentos levantados por companheiras da área são frequentemente acusados pelos seus colegas homens de departamento como reivindicação de privilégio epistêmico, ingenuidade ou falta de visão política e institucional.


É curioso, porém, que o sujeito que nos acusa de reivindicar privilégio epistêmico não enxergue sua própria prática como situada em um determinado posicionamento atravessado por tantos – esses sim privilégios epistêmicos. Que o diga Pedro Moacyr, que embora acreditasse no merecimento natural de seus colegas homens às vagas porventura abertas no seu curso de História, não se fez de rogado ao pontuar o permanente da Olga, numa prática tão doméstica como uma futrica.

 

Notas

[1] Este primeiro tópico foi retirado de minha tese de doutorado intitulada: De um Curso d’Água a Outro, memória e disciplinarização do saber histórico na formação dos primeiros professores no curso de História da USP, defendida pelo PPGHIS/UFRJ, em 2018. Conferir o capítulo 1. [2] Acervo Eurípedes Simões de Paula (AESP). Carta de Pedro Moacyr Campos ao titular. 30/10/1944. Cx 23, n. 1780. [3] AESP. Carta de Cruz Costa ao titular. 22/11/1944. Cx 23, n. 1792. [4] AESP. Carta de Cruz Costa ao titular. 01/12/1944. Cx 23, n. 1795. [5] AESP. Carta de Pedro Moacyr ao titular. 10/12/1944. Cx 23, n. 1799. [6] AESP. Carta de Cruz Costa ao titular. 28/01/1945. Cx 23, n. 1818. [7] AESP. Carta de Pedro Moacyr ao titular. 20/05/1945. Cx 23, n. 1867. [8] AESP. Carta de Pedro Moacyr ao titular. 20/03/1945. Cx 23, n. 1844. [9] Por região, a distribuição se dá da seguinte forma: Norte: total de 26.933 professores, sendo 14.188 homens (52,7%) e 12.745 (42,3%); Nordeste: total de 90.499, sendo 46.020 homens (50,8%) e 44.479 mulheres (49,2%);Centro-Oeste: total 37.444, sendo 19.545 homens (52,2%) e 17.899 mulheres (47,8%); Sudeste: 167.274 total, 94.125 homens (56,3%) e 73.149 mulheres (43,7%); Sul: 75.743 total, sendo 39.936 homens (52,7%) e 35.807 mulheres (47,3%). Fonte: Sinopses Estatísticas da Educação Superior – Graduação.

 
 

Referências


Acervo Eurípedes Simões de Paula. CAPH/FFLCH/USP. Caixa 23.

PANTALEÃO, Olga. Olga Pantaleão: Historiadora. In BLAY, Eva e LANG, Alice. Mulheres na USP: Horizontes que se Abrem. São Paulo: Humanitas, 2004.

SMITH, Bonnie. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Bauru, SP: EDUSC, 2003.

 


Aryana Costa é doutora em História pelo PPGHIS / UFRJ, professora no DHI / UERN - campus Mossoró, trabalha com ensino de história e historiografia.

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