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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Nosso corpo (realmente) nos pertence?



Eadweard J. Muybridge. Animal Locomotion (1887)


O corpo feminino é, há anos, objeto de discussão na sociedade. Obviamente, não posso falar de corpo feminino sem mencionar aqui o corpo biológico, empírico, de carne e osso. Contudo, como analista de discurso, me valerei dos postulados de Michel Pêcheux, precursor da Análise de Discurso materialista, assim como de Eni Orlandi, que introduziu a Análise de Discurso materialista no Brasil, para refletir sobre os sentidos dados aos corpos femininos ao longo dos séculos que mencionam o corpo na AD enquanto discurso, pois “enquanto corpo empírico, ele é apenas carne” (ORLANDI, 2012, p. 85). Isso significa que o corpo é materialidade discursiva e que é objeto teórico, pois ao pensar nos efeitos de sentidos, percebe-se que ele é afetado pela memória, que ele determina e é historicamente determinado. Para a AD, “o corpo configura-se como lugar de inscrição. Inscrição do sujeito, inscrição do sentido” (DIAS e COSTA, 2017, p. 94). Portanto, o corpo aparece no discurso como lugar de resistência tanto social quanto simbólica e é considerado como lugar de luta onde o sujeito, que não é um ser empírico, um indivíduo ser no mundo, mas sim um elemento do discurso, se inscreve e é submetido à ideologia e ao inconsciente. Em linhas gerais, a noção de corpo atravessa o imaginário social, de modo que sobre ela recaem questões a respeito do funcionamento dos sujeitos na sociedade. Diversas condições, como religiosidade, moral e sexualidade, por exemplo, conduzem os corpos pela história, o que leva a comportamentos que constituem a sociedade.


Desde os relatos feitos por Pero Vaz de Caminha ao rei português, nos quais ele relata suas impressões sobre os corpos indígenas- mencionando que “certo era tão bem-feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela” -, até os dias atuais, o corpo da mulher é objeto de inquietação e de uma discursivização que busca o seu controle há séculos. Religiosos controlavam esses corpos através da imposição da cultura portuguesa e, a partir disso, as índias, antes puras, passaram a ser consideradas pecadoras e eram obrigadas a esconder a sua nudez em roupas. Assim, podemos perceber através da carta de Caminha, relacionando a um processo histórico, que o corpo descrito através desse olhar europeu leva a uma memória de que o corpo da mulher é visto como objeto de desejo masculino.


E não apenas objeto de desejo, o corpo feminino também é subjugado. Durante anos, a mulher foi ensinada a cuidar da sua casa, do seu marido e dos seus filhos, sendo esse o exemplo de mulher ideal. Essa imagem de esposa e de mãe associou a ideia de feminilidade à de maternidade, relacionando a subordinação da mulher ao lar. Diante disso, a constituição do feminino como pretensamente pertencente ao masculino, além de torná-la submissa, inferior e domesticada, é um efeito de sentido produzido nos discursos masculinos sobre as mulheres atravessado por décadas e que coloca esse corpo como subjugado, já que lhe foi negado um lugar, um espaço que não fosse o familiar.


Foucault, ao afirmar que “forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos” (FOUCAULT, 1999. p. 181), revela o processo de docilização dos corpos e, no que se refere ao corpo feminino, nos faz pensar no quanto esse corpo é mais útil quando controlado, pois corresponde melhor às ordens e, dessa forma, a dominação do corpo feminino se dá como uma forma de poder. Portanto, pode-se afirmar que o corpo feminino, seus gestos, suas formas de apresentação, de andar e de sentar, por exemplo, nada têm de natural, mas, ao contrário, representam uma corporicidade fabricada, dominada, docilizada. A mulher é, portanto, considerada a partir de uma natureza que justifica a apropriação social de seu corpo pela dominação e predisposto naturalmente à reprodução. Dessa forma, a mulher era criada para o lar e para gerar filhos, tendo a sua voz silenciada, em posição subalterna na formação social.


Simone de Beauvoir, em seu livro O Segundo Sexo, menciona a prevalência do homem sobre a mulher, reafirmando esse lugar de subalternação feminina. Em suas palavras, “mulher tem ovários, um útero; eis as condições singulares que a encerram na sua subjetividade” (BEAUVOIR, 1970. p. 11), ou seja, o corpo feminino é obstáculo, de modo que a diferença anatômica justifica a necessidade da submissão e se constrói como prisão. A historicidade constituída pela memória na qual as proibições externas são interiorizadas se converte em proibições internas relacionadas aos seus corpos, construindo essas formações imaginárias nas quais os corpos femininos passam a ser tutelados, vivendo sob a forma de culpa, tornando essas mulheres sexualmente repreendidas, interditando o corpo feminino para o prazer e condicionando seus corpos apenas para a reprodução. Essa condição da maternidade, na qual a mulher pode gerar descendentes, leva inevitavelmente a uma prisão, de maneira que uma mulher sem filhos – seja por decisão ou por alguma dificuldade – é drasticamente vista como uma mulher imperfeita. Nessas condições, a mulher não consegue reproduzir um retorno a si mesma como essencial, ou seja, ela está sempre em relação a, e ao não se constituir como essencial, interioriza a necessidade do senhor, do homem. Dessa forma, pela perspectiva de Beauvoir, o destino da mulher é a construção da família, já que a sua função primordial é cuidar da casa e dos filhos.


A mudança começa, de fato, no século XX, mais precisamente a partir da década de 1970, com os movimentos feministas a favor do aborto e da liberdade sexual da mulher a partir do uso do anticoncepcional. Assim, a partir desses movimentos ocorridos nos Estados Unidos e na França, mulheres passaram a reivindicar a autonomia dos seus corpos, principalmente no que tangia à maternidade. A segunda onda lutou não só pela igualdade de gênero, mas também pela liberdade de seus corpos através do uso de contraceptivos e essa era também uma luta por uma revolução sexual, já que, historicamente, os corpos femininos eram tutelados através da reprodução. A partir disso, esses discursos se abriram para debates sobre o corpo e a reivindicação dos seus direitos contra o controle social ao qual era submetido, tornando o corpo um lugar de disputa no qual se lutava pela livre escolha da maternidade. Assim, uma das ideias dessa onda feminista era expressa pela máxima “nosso corpo nos pertence”, cujo elemento central era a relação de poder ditada no espaço público e no privado. Esse princípio re-significou a ideia de corpo disciplinado, produzindo efeitos de sentidos ao ser enunciado por esse sujeito-mulher. Tratava-se, dessa forma, de uma re-significação da sexualidade através da luta não só do direito individual, mas também do direito coletivo, a partir de práticas de liberdade e de enfrentamento do controle social desses corpos. Ao criticar esses mecanismos institucionais que controlavam os corpos femininos, os movimentos feministas buscaram desconstruir essa historicidade que atravessava os sujeitos através de uma memória discursiva dominante sobre o corpo, apoiada na dominância da sexualidade reprodutiva. Dessa forma, esses movimentos visavam separar o conceito de sexualidade ao de procriação, o que só foi possível a partir do advento da contracepção hormonal oral, o que levou à subversão da ideia de dominação masculina que existia.


E será que avançamos nesta luta? Será que, de fato, conseguimos nos libertar desse domínio imposto por essa cultura patriarcal sobre os nossos corpos? Não há dúvidas de que os avanços na medicina em relação aos contraceptivos femininos ajudaram a propagar essa ideia de que a mulher passou a ter o controle sobre o seu corpo. Além disso, o planejamento familiar ajuda a disseminar essa tomada de decisão de que toda mulher deve escolher seu próprio método contraceptivo. Entretanto, a responsabilidade ainda recai sobre a mulher, de modo que cabe a ela o papel de mãe, e essa responsabilidade torna-se política a partir do momento em que o Estado não respalda essa mulher. Significa dizer, de acordo com o senso comum, que se houvesse um planejamento familiar adequado a essas mulheres no Brasil, não haveria tanta criança e tanta precariedade de serviços públicos, como se apenas as mulheres fossem responsáveis por planejar a quantidade de filhos que deseja ter, demarcando as diferenças entre a reprodução livre dos homens e a reprodução condenada das mulheres.


E são essas mulheres que procuram o planejamento familiar a fim de encontrar um método contraceptivo eficaz para terem controle sobre os seus corpos e também para assegurar um futuro melhor para aqueles filhos que já tiveram. Foi a partir dessa perspectiva de pensar em futuro melhor para o meu filho e de me manter mãe apenas dele que me deparei com Júlia Rocha, uma médica de família de Belo Horizonte que passou a inserir Dispositivos Intra Uterinos em mulheres mineiras para propagar ainda mais o direito da mulher sobre o seu corpo, publicando em sua página do Facebook relatos nos quais narra situações em que atende essas mulheres. Dessa forma, a constituição da imagem da mulher atual passa a chamar a atenção, pois ela tem cada vez mais acesso às informações por diferentes meios de comunicação. As redes sociais contribuem cada vez mais para aumentar a circulação dessas informações, levando determinados discursos a circularem mais amplamente na sociedade, configurando relações de poder e legitimando os discursos femininos.


O poder das redes sociais pode mudar uma situação considerada já determinada, principalmente em casos que envolvem as mulheres. Como se esquecer do caso da menina de dez anos que foi estuprada pelo tio e que depois de ter o seu direito de interromper a gravidez garantido por lei teve seu paradeiro divulgado e foi duramente ofendida na porta do hospital onde faria o procedimento? Esse caso mostra, além da força das redes sociais, a força da luta do movimento feminista Fórum de Mulheres de Pernambuco, que garantiu a integridade física da menina e de sua família após os ataques de extremistas religiosos. E como não sentir a dor de Mariana Ferrer, dopada e estuprada, que durante o julgamento do acusado foi humilhada e ridicularizada sob a alegação de que as suas fotos sensuais eram “ginecológicas”, nas palavras do advogado de defesa? Para ele, as fotos de Mariana em poses sensuais deslegitimam seu discurso como vítima e provam o poder que os homens ainda têm de destruir a imagem de mulheres subjugando-as, marcando posições de poder utilizando um discurso atravessado pelas formações ideológicas constituídas pelas formações discursivas desses sujeitos.


Não há dúvidas de que há muito que mudar na nossa sociedade para que possamos finalmente nos considerar donas do nosso próprio corpo, já que os discursos sobre o feminino ainda estão ligados a imaginários enraizados em um decurso histórico, que levaram a um silenciamento também histórico, já que, socialmente, a mulher não tinha liberdade de fala. Percebe-se que só existem papéis demarcados para a mulher: ou como mãe, perante a sociedade, ou como porta de entrada para o mal, como descreve o discurso religioso, e a redenção dessa mulher se dá através da maternidade e da tutela do seu corpo, e é a partir desses discursos que a mulher é significada e que os sentidos produzem efeitos na sociedade. Apesar de pensarmos que houve avanços na questão do papel do feminino ser definido pela maternidade, essas discursivizações seguem produzindo efeitos até hoje e se faz necessário que o mundo perceba que não aceitaremos mais o controle sobre os nossos corpos e, mesmo que a sociedade -ainda tão patriarcal - nos faça pensar o contrário, os nossos corpos sim já nos pertencem.

 
 

Referências


ORLANDI, Eni P. Processos de significação, corpo e sujeito. In: ______. Discurso em análise: sujeito, sentido e ideologia. 2ed. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão; tradução de Raquel Ramalhete. 20 ed. Petrópolis, Ed. Pontes, 1999.

BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos. Tradução de Sergio Milliet. 4ª ed., Difusão Europeia do Livro, São Paulo. 1970.

 


Elaine Moraes da Silva Lourenço é mestranda de Estudos de Língua na área de Linguística, filiada à linha teórica da Análise de Discurso materialista, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); Bacharela e Licenciada em Letras - Português / Espanhol, pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora, mãe e feminista.

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