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Histórias de idiotice

Sobre A idiota, de Elif Batuman



Fonte: Pinterest.


“Amo esse livro”, um amigo comentou quando postei uma foto da capa de The Idiot de Elif Batuman, publicado em 2017, mas recentemente lançado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução de Odorico Leal. Eu estava nas primeiras páginas da edição no original. Selin, uma filha de imigrantes turcos, por sua vez, estava recém se instalando em Harvard, conhecendo suas colegas de quarto, ambas muito bem providas de excentricidades quase caricatas, entabulando com uma delas um diálogo sobre dicionários conterem ou não o verbete Diabo da Tasmânia. Aquilo tudo me pareceu familiar, de um jeito bastante específico.


“Americano demais,” respondi curtamente, recorrendo um pouco à nesga de experiência que tenho nesse âmbito, por ter vivido naquele país praticamente no mesmo ano em que o romance se passa, um período curto da minha vida, mas durante o qual meu pai por vezes me olhava e comentava que eu estava “virada em uma gringa”, e no qual me faltavam as palavras na minha própria língua para brigar com ele e com minha mãe. Duvidei que eu ainda tivesse idade para aquilo tudo.


Uns dias mais tarde, entretanto, me peguei rindo em voz alta por motivos que não entendia muito bem e tentando tirar umas meias da máquina de lavar roupa e pendurá-las no varal com uma mão só, o livro equilibrado nos meus outros dedos, sem conseguir despegar meus olhos da página. Leio enquanto faço tarefas domésticas. E gosto de conversar principalmente enquanto cozinho, o celular esperando que eu vá digitar algo em resposta a alguém com a mão meio molhada depois de ter fatiado algo. Raramente mando áudios, por conta do gosto que tenho pela palavra escrita, mesmo com suas armadilhas. O que explica por que esse livro me afetou.


The Idiot é um romance de formação em parte autobiográfico; alguns dos episódios que aparecem ali também constam no primeiro livro da autora, The Possessed, um volume de ensaios sobre o mundo acadêmico. Os títulos de ambos remetem às obras homônimas de Fyodor Dostoievsky, reflexo dos estudos de Batuman em literatura russa. Selin quer ser escritora e quer entender como a linguagem funciona, então se matricula em disciplinas de linguística e de filosofia da linguagem. E um dos trunfos da história é justamente tudo o que ela nos faz pensar sobre idiomas, linguagem, comunicação e narrativas, e como eles pautam nosso cotidiano e nossas relações afetivas.


Nos primeiros capítulos, Selin está retornando para casa depois de uma visita à família e lendo Père Goriot em uma edição sublinhada presumivelmente por seu dono anterior, um Brian Kennedy. A eleição de trechos a serem destacados lhe parecia disparatada, lhe deixando aliviada de não estar apaixonada por Brian Kennedy e, portanto, ser poupada do ímpeto de decifrar seus pensamentos. Esse episódio é um prenúncio do que Selin passará fazendo por quase todo o resto da narrativa. Um dia ela impulsivamente envia um e-mail para Ivan, um estudante de matemática húngaro colega seu de russo, uma mensagem baseada nos textos de um livro de exercícios de suas aulas desse idioma. E assim estabelece-se uma correspondência virtual críptica entre duas pessoas que até se conhecem pessoalmente, mas não muito bem.


The Idiot é ambientado nos anos 90 e, portanto, está repleto de referências a Walkmans, bandas do período e ao fato de que inicialmente Selin não sabia o que fazer com um cabo ethernet. No entanto, na dinâmica de sua relação com Ivan está o germe dos romances online contemporâneos, com a tensão da interpretação, os silêncios, as pequenas mentiras e as rupturas, os retornos e, principalmente, os tormentos que eles podem causar a uma imaginação fértil. Em dado momento, Selin se dá conta de que poderia ver quando e se Ivan estava logado em seu e-mail de Harvard, em qual servidor, e vê-lo online torna-se uma forma de conforto, em meio a todas as incertezas de sua relação. Lembrei-me de uma amiga uma vez, em uma mesa de bar, que ao me ouvir reclamar do fato de que alguém que eu pretendia encontrar não me dava retorno, disse: “olha no Instagram, fico enfurecida quando não responde no Whatsapp, mas tá ali, online no direct”. Nós reclamamos muito da quantidade de informação que essas empresas todas recolhem a nosso respeito, mas não paramos muito para pensar no que fazemos com nossas próprias cabeças ao procurá-las sobre os outros, principalmente aqueles em que sentimos que não podemos confiar.


Selin fica tão transtornada com a tenuidade de seu vínculo com o colega, com os jogos de poder dessa comunicação intermitente, que procura o atendimento psicológico da universidade. “Você tem certeza de que ele existe?”, pergunta o terapeuta, para logo em seguida entrar em um longo discurso sobre a conveniência do tipo de relação com alguém que está disponível somente em texto. Em outro momento, ela se perde na ideia de que Ivan estaria querendo sacaneá-la de alguma forma, aplicá-la algum tipo de golpe, apesar de saber que ele possivelmente teria mais o que fazer. Porém são dúvidas genuínas, considerando a facilidade que há em se fabricar uma pessoa na internet e tapear muita gente. E isso que as conversas deles jamais entram para o âmbito sexual: eles falam de cereais, átomos, Shakespeare.


O romance é narrado em primeira pessoa, por uma Selin mais velha, cuja voz claramente irrompe no texto. Uma hora, que me afetou em específico, diz que gostaria de pegar a si mesma pelo ombro, sacudir, perguntar o que ela pensava que estava fazendo. Não à toa, o romance se chama A idiota, o que contém um julgamento precisamente a respeito da situação de vulnerabilidade na qual Selin se colocou. Antes de começar seu doutorado em Berkeley, Ivan passaria o verão na Hungria. Na Hungria, que é convenientemente perto da Turquia, onde Selin passaria parte das férias com sua mãe (a ocupação otomana da Hungria e as similaridades entre o turco e o húngaro perpassam o romance). Impetuosa, ela decide se voluntariar para dar aulas de inglês a crianças em um vilarejo húngaro no mesmo período. Tudo isso por alguém com quem não tem qualquer vínculo sério, com quem inclusive não tem sequer uma relação física e que volta e meia não entende o que ela quer dizer - o inglês não é a língua nativa de Ivan, afinal de contas. A narradora deixa claro que o rapaz não parece valer uma longa viagem de avião e os desconfortos de se viver em meio ao campesinato húngaro: reúne todas as características do que hoje chamamos boy lixo, parecendo manter Selin por perto, em uma situação repleta de ambiguidades, somente para satisfazer sua autoestima. E para isso, faz algo que os homens sabem fazer muito bem: fazerem a nós mulheres duvidarmos o tempo todo de nós mesmas - se somos bonitas, se somos agradáveis, se somos engraçadas e inteligentes, interessantes, se somos o suficiente -, e aceitarmos quando eles dizem que morangos dão em árvores, mesmo sabendo que não. Por vezes lembrei da mesma amiga de antes, em outra mesa de bar, na última vez que nos vimos no carnaval antes da pandemia, me alertando: “não vai entrar em outra história dessas ambíguas em que o cara só te usa para validação intelectual”.


Pois no fim é precisamente em histórias que Selin quer entrar. No final do romance, em uma conversa com Svetlana, sua melhor amiga, esta diz que ambas vivem suas vidas de modo a construir enredos e ir atrás de boas histórias, embora o controle que elas tenham sobre eles seja tênue. A própria narrativa de The Idiot por vezes escapa dessa pretensão, com a enumeração de sucessivos episódios que não parecem ter importância, de personagens que aparecem e somem, de frases curtas sobre atos mundanos.


Selin vive assim porque quer ser escritora, assim como Batuman, que já comparou os términos de seus relacionamentos e os episódios depressivos que os seguiram justamente à falta de direção que sentimos ao fim de uma história da qual gostamos bastante. Eu mesma admito certa inclinação a isso. Ano passado me perguntaram por que eu não era direta a respeito da indefinição de uma situação, que por vezes me angustiava: “Isso seria como estourar um balão”, respondi. No entanto, na época de redes sociais e em tempos pandêmicos que nos impõem a necessidade de manter nossas relações até certo ponto na virtualidade, me pergunto se não estamos constantemente construindo narrativas sobre nós mesmas e sobre os outros, também como forma de controle desse cotidiano instável, com laços tênues marcados pelo ghosting, pelo “vácuo”, pelas rupturas acidentais por conta da fragilidade que o contexto nos acomete, e também pelas formas passivas de se exercer o poder através da linguagem e da comunicação. Eu, pelo menos, às vezes me sinto exausta de tantas histórias que vivo em minha cabeça.

 
 

Referências


BATUMAN, Elif. The idiot. New York: Penguin Books, 2018.

BATUMAN, Elif. A idiota. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.

 


Renata Dal Sasso Freitas é professora de Teoria da História no Curso de Licenciatura em História da Universidade Federal do Pampa, no Rio Grande do Sul, e pesquisa as relações entre a história e a escrita de prosa de ficção.

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