HuMANAS: Pesquisadoras em Rede
Frida Kahlo empoderada
Possibilidades e limites da atuação feminista nas redes sociais
Erika Bastos Arantes

As mulheres precisam saber que o feminismo não tem a ver com se vestir para o sucesso, tornar-se executiva de grandes empresas e nem ser eleita para cargos públicos; não tem a ver com ter um casamento em que ambos têm profissões, ir esquiar nas férias e passar tempos longuíssimos com o marido e dois filhos adoráveis porque se tem uma empregada doméstica que possibilita tudo isso, mas que não tem tempo ou dinheiro para fazer isso por si; não tem a ver com abrir um Banco da Mulher, passar um fim de semana fazendo um curso caro que garante que vai lhe ensinar a ser autoconfiante (mas não agressiva); mais do que tudo, não tem a ver com se tornar policial, agente da CIA ou general do exército. Mas se essas imagens distorcidas do feminismo se tornam mais reais do que as nossas, em parte, por nossa própria culpa. Não temos nos esforçado tanto quanto deveríamos para apresentar análises alternativas claras e importantes, que se relacionem com a vida das pessoas, e para oferecer grupos ativos e acessíveis nos quais se possa trabalhar. (Elrich, 1981, apud hooks, 2015, p. 200)
O feminismo está em alta. Em 2017, “feminismo” foi eleita pelo dicionário norte americano Merrian-Webster "A Palavra do Ano", por ter sido a mais buscada. No Brasil, de janeiro de 2014 a outubro de 2015, o número de buscas pelo termo no Google aumentou 86,7%. Entre 2015 e 2017, o aumento foi de 200%, batendo recorde de buscas nas redes em 2018. Em 2020, após uso do termo em um reality show, “sororidade” saiu do nível zero de relevância na quantidade de buscas para 100 em apenas 2 horas, alcançando o topo em alguns estados brasileiros.
É inegável que o feminismo está presente, de uma forma ou de outra, no cotidiano de milhares de pessoas. As universidades, as instituições, os movimentos sociais em geral, e os meios de comunicação, como cinema e TV etc., estão sendo interpelados a incluir o feminismo de alguma maneira.
A enorme proliferação desses temas nos diferentes espaços nos permite afirmar que expressões como “feminismo”, “empoderamento” e “igualdade de gênero” estão se tornando verdadeiros jargões midiáticos, com forte apelo para o consumo. É comum que o feminismo (e as representações da diversidade em geral) seja usado em campanhas publicitárias que colocam “a causa” como marca diferencial, objetivando o aumento das vendas ou prevenindo boicotes de produtos e marcas por determinado público.
Na verdade, o “consumo” do feminismo não é exatamente uma novidade. Já nos anos 1980 é possível perceber esforços da incorporação de pautas feministas pela mídia, especialmente nas propagandas publicitárias. De lá para cá, o feminismo e suas lutas estão cada vez mais presentes no cotidiano das pessoas, não somente fruto do aumento de sua visibilidade nos meios de comunicação (na publicidade, mas também em novelas, filmes e séries televisivas), mas principalmente pela ampla presença das questões feministas nas redes sociais. É nesse espaço virtual que o movimento vem lançando esforços de fortalecimento da sua organização.
É possível perceber o papel do mundo virtual, por exemplo, na propagação de palavras de ordem associadas ao feminismo. Além de constar em perfis e páginas nas redes sociais, frases de impacto, tais como “Meu corpo, minhas regras”, “Nós somos as netas das bruxas que vocês não conseguiram queimar”, “Lute como uma garota”, etc. podem ser vistas estampando camisetas e cartazes em manifestações. Além disso, nos últimos anos, foram várias as campanhas relacionadas ao feminismo que tiveram grande repercussão na internet. No Brasil, exemplos dessas campanhas são as hashtags #NenhumaAMenos, #MeuPrimeiroAssédio, #MexeuComUmaMexeuComTodas, #NãoÉNão, entre outras. Considerada a maior delas, o #EleNão surgiu em um grupo de Facebook criado às vésperas da eleição presidencial de 2018, o Mulheres Unidas Contra Bolsonaro, e tinha como principal objetivo repudiar o então candidato à Presidência da República, Jair Messias Bolsonaro, conhecido por depoimentos machistas e misóginos e considerado, pelas feministas, um retrocesso na luta pelos direitos da mulher. Em poucos dias de existência, o grupo atingiu mais de 3 milhões de seguidoras e foi responsável pela maior manifestação de mulheres da história do Brasil, ocorrida em 114 cidades do país e também no exterior. Tamanha repercussão acarretou no hackeamento do grupo por grupos de extrema direita. Assim, é inegável o potencial articulador da internet nas lutas políticas, principalmente quando estas extrapolam o mundo virtual e explodem também nas ruas e em atividades que não se limitam às telas.
No entanto, é preciso também pensarmos sobre os limites de um tipo de ativismo restrito ao mundo virtual e também em como o meio digital pode ampliar as possibilidades de expansão de um “feminismo de mercado”, de um feminismo de empoderamento individual, que pensa o movimento como uma muleta para resolução de problemas pessoais, sem relação com o coletivo, ou de ponte para conquistas também individuais, onde é possível incluirmos ascensão social, altos cargos antes não alcançados por mulheres e até mesmo um certo status nas redes sociais e outras mídias.
Nos grupos organizados e meios acadêmicos, muitas são as críticas feitas a esse feminismo de vertente liberal, que visa “empoderar” mulheres através do consumo e da ascensão a cargos de poder, sem colocar em cheque o sistema que sustenta a reprodução das desigualdades, entre elas a desigualdade de gênero. Muitas são as ativistas e intelectuais (e intelectuais ativistas) que criticam a apropriação das pautas feministas pelo capitalismo e o entendimento do movimento como busca por “oportunidades iguais de dominação” (Bhattachaya, Arruza e Fraser, 2019).
Assim, pensando no papel dos meios digitais na difusão desse “feminismo de mercado”, uma possibilidade de análise é a apropriação e difusão de símbolos feministas. Podemos citar dois exemplos bastante relevates e emblemáticos: a difusão da imagem de mulheres como Frida Kahlo e Marielle Franco como símbolos feministas.
Frida Kahlo tem sua imagem reconhecida no mundo todo. Seu rosto pode ser visto estampando roupas, quadros, canecas, porta copos, adesivos de geladeira, almofadas e outros produtos. Além disso, 60 anos após a sua morte, a pintora mexicana estampou a capa de uma das maiores revistas femininas do mundo: a Vogue. É possível afirmar que, no Brasil, um certo nicho de mercado associado à imagem de Kahlo se deve em grande parte à enorme visibilidade que ganhou na internet, em páginas pessoais ou de coletivos feministas. A mexicana recebe em média 135 mil buscas mensais no Brasil, segundo dados de 2017. Frida Kahlo, apesar de ter sido uma mulher que sem dúvida desafiou os padrões e ousou ocupar espaços que não eram designados para as mulheres no México da primeira metade do século XX, nunca se intitulou feminista e sua luta estava associada mais diretamente à causa dos trabalhadores e à luta de classes, tendo entrado para a Juventude Comunista aos 13 anos de idade e se filiado ao Partido Comunista Mexicano aos 20.
Mais especificamente no Brasil, a imagem de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro pelo Psol, assassinada em 2018, está sendo tão difundida nas redes, que além de estar em camisetas, bolsas, botons, chegou a estampar roupas assinadas por famoso estilista na glamourosa São Paulo Fashion Week. Também alçada a símbolo feminista, Marielle Franco fazia parte de um partido de esquerda, identificado como socialista e assim ela definia sua afiliação política.
O que percebemos é que a ampla divulgação e os usos das imagens dessas mulheres nas redes, apesar de estimular mulheres (e homens) a conhecerem suas histórias e ideias, podem também apagar partes importantes de suas histórias, especialmente àquelas comprometidas com o fim do capitalismo e com os ideais revolucionários. Esse apagamento serve para torná-las mais “palatáveis” a um público diversificado e não alinhado às ideias marxistas. O mercado, seguindo à risca os ideais do neoliberalismo, coloca lado a lado, como símbolos da luta feminista, mulheres com ideias completamente diferentes – e mesmo antagônicas – sobre as teorias a respeito dos movimentos sociais e os métodos de luta.
Os movimentos feministas atuais são tão diversificados como as mulheres que o compõem. São mulheres de diferentes identidades raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, de classe, entre outras. E também são diversas as vertentes teóricas do feminismo: liberal, marxista, radical, feminismo negro, interseccional, decolonial, etc. Essa enorme diversidade, apesar de ter potencial para enriquecer o debate, pode também fazer emergir um quadro de contradições, principalmente em relação aos encontros e divergências entre as pautas feministas e as dos movimentos classistas, mas não somente. A enorme difusão dessas diferentes vertentes nas redes, através do chamado “ciberativismo”, acirram esses embates e contradições presentes no feminismo desde seu primórdios.
Se, por um lado, a internet permitiu que ideias e pautas feministas se expandissem para um público mais amplo, por outro, a percebemos como um campo de atuação em que, em muitos casos, a lógica das redes sociais pode servir mais à projeção (e auto-promoção) de indivíduos e à proliferação de ideias contraditórias sobre o feminismo do que ao estímulo a um debate aprofundado e atento. Dessa maneira, é preciso reconhecer as potencialidades da internet como novo espaço de atuação dos movimentos sociais, mas atentando para os problemas que advêm desse nova forma de atuar, relacionados principalmente ao baixo nível de compromisso com a luta organizada e que extrapole as telas de computador, celulares e tablets.
Assim, é necessário questionarmos também os limites da difusão de frases, hashtags, grupos virtuais e símbolos icônicos para o movimento e de que maneira os grupos organizados para além das redes, estão se relacionando com esse feminismo que está tão presente, de alguma maneira, no cotidiano da maioria das pessoas, mas que não necessariamente se preocupa ou reflete sobre seus percursos de formação: leituras das diferentes referências, grupos de estudos, círculos de discussão, atuação em coletivos, etc.
Essa preocupação surge de uma inquietação pessoal – mas imbricada às minhas atividades de pesquisadora, professora e mulher que se considera feminista – de observar que o feminismo pensado como movimento que pretende modificar as estruturas de poder vem perdendo cada vez mais espaço para um feminismo visto como um lugar de status pessoal, uma “marca” individual, um trampolim para likes e seguidores e até gerador de grandes lucros.
O domínio do mundo virtual pelos movimentos sociais é ainda extremamente recente e não sabemos quais os resultados dessa novidade a longo prazo. Mas é preciso estarmos atentas às apropriações neoliberais do feminismo, para que o movimento não se afaste dos ideais coletivos, servindo à contenção da crítica social e à criação de uma “protagonista empoderada” (Lana, 2018), ficando relegado mais ao campo das escolhas individuais e menos à crítica e destruição das estruturas que produzem as desigualdades.
#Feminismo #Ciberativismo #Hashtag #Mulheres #RedesSociais
Referências
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHAYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto. São Paulo: Boitempo, 2019.
hooks, bell. “Mulheres Negras moldando a Teoria Feminista”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº16. Brasília, janeiro - abril de 2015
LANA, Lígia Campos de Cerqueira. “A Consumidora empoderada: publicidade, gênero e feminismo”. Intexto, Porto Alegre, UFRGS, n. 42.