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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Espelho de ver outras

Mulheres do fim do mundo


Gabriela Mitidieri



Somos mulheres atravessadas por diversas circunstâncias afetivas e sociais. Nascemos em uma das muitas periferias do capitalismo, país cuja democracia está sempre à beira do abismo, região de economia sempre instável, laboratório de políticas de austeridade desde 2016. A formação do Brasil, como toda formação capitalista/colonial, é patriarcal e racista – e essas estruturas nos regem ainda hoje. Particularmente, não faz muito tempo que percebi (embora já soubesse em teoria) que minha trajetória individual se cruzava com outras tantas trajetórias e com múltiplas condições coletivas sobre as quais eu não tinha tanto controle quanto imaginava.


Não estou, claro, querendo promover nenhum tipo de determinismo geográfico ou econômico, não estou dizendo que não temos agência, responsabilidade ou capacidade de inventar caminhos diante das circunstâncias que herdamos. Isso seria, no sentido sartreano, má fé. É, justamente, quando mais conhecemos as estruturas político-sociais, raciais, sexuais e de gênero que nos perpassam, que mais passamos a ter responsabilidade sobre nosso agir no mundo. Num planeta de escolhas limitadas (e cada vez mais limitadas para a maioria das pessoas) penso, junto a autores tão diversos como Isabelle Stengers, Édouard Glissant, Silvia Cusicanqui, entre outros, que é preciso refundar a solidariedade, imaginar futuros em conjunto – construir coletivamente novas formas de viver junto.


Refundar a solidariedade ou imaginar novas formas de viver junto não significa, evidentemente, evitar o conflito. Significa, sim, compreender que conflito e diversidade são constitutivos de nossas sociedades. Significa imaginar formas de dialogar em conflito, desestabilizando categorias universalizantes que herdamos de nossa história.


O maior legado do universalismo iluminista é a abertura para o autoquestionamento - logo, questionemos

Foi pensando em diálogo, solidariedade e questionamento que eu e outras pesquisadoras criamos, no dia 17 de abril de 2020, um grupo de WhatsApp chamado “Mulher do fim do mundo”. Foi assim que nascemos enquanto utopia, enquanto caminho a ser percorrido junto e que, de fato, percorreríamos juntas ao longo dos três meses seguintes. Nesse grupo, eu, Maiara Juliana Gonçalves, Sheila Lopes Leal, Flavia Veras, Thaís Tanure e, mais recentemente, Leticia Pereira, idealizamos um periódico que deve ser um espaço de troca, diálogo, compartilhamento de experiências e intervenção pública para mulheres. O título “Mulheres do Fim do Mundo” é uma encruzilhada semântica. Mulheres do fim do mundo são as mulheres de todas as periferias do capitalismo. São, também, as mulheres periféricas dessas mesmas periferias globais. Mulheres do fim do mundo são as mulheres desviantes da norma cis-hétero-normativa, são todas as mulheres que vivenciam os problemas do sul global sob os efeitos do patriarcado, da colonialidade, do racismo e do sexismo. São as mulheres, negras em sua maioria, que exercem a maior parte do trabalho (não remunerado) do cuidado, essencial para o funcionamento do sistema. Mulheres do fim do mundo são, ainda, as mulheres do Antropoceno – ou, nas palavras de Stengers, do Capitaloceno.

Nosso objetivo não é o de disputar um campo específico do saber (embora isso também seja fundamental), mas criar um canal aberto, fazer ressoar a maior diversidade possível de vozes, em diferentes gêneros textuais – poesias, contos, ensaios, traduções, relatos, entrevistas. A partir dos textos recebidos, procuramos fazer um trabalho editorial de seleção e revisão, seguindo alguns critérios ético-políticos relativos à nossa militância em um feminismo interseccional e decolonial.


Em Calibã e a bruxa, Silvia Federici (2017) nos mostrou que uma das principais características de formação das nações do capitalismo ocidental foi a profusão de leis que, entre os séculos XVI e XVIII, aproximadamente, proibiram as reuniões de mulheres e a coabitação de mulheres – leis que visavam a evitar o compartilhamento de experiências e saberes, inclusive contraceptivos.


A construção do ideal de família burguesa nos séculos XVIII e XIX, ao mesmo tempo em que confinava grande parte das mulheres ao espaço doméstico (associando o espaço público à razão – que, por sua vez, foi vinculada ao gênero masculino), deixava milhares de outras em condições de extrema exploração nas fábricas, sempre controlando seus corpos e sua sexualidade, necessários à reprodução de mão-de-obra. Como sabemos, a escravidão e o racismo também foram componentes fundamentais da formação do mundo moderno.


Confinadas, exploradas ou escravizadas, as mulheres sempre encontraram brechas de resistência ou subversão. Fosse pela leitura e pela literatura, pelos trabalhos no campo da educação, pela construção de redes de apoio, pela formação de associações e sindicatos, pela participação em revoltas ou por pequenas ações cotidianas. Toda resistência precisa de solidariedade e diálogo, precisa de compartilhamento de experiências, precisa de debate de ideias. Queremos construir espelhos em que possamos ver outras.



Escrevam para a Mulheres do fim do mundo!


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#Periódico #Feminismo #Política

 

Referência


FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa. Mulheres, corpo e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo, Elefante, 2017.

 


Gabriela Mitidieri é historiadora, professora e editora da revista Mulheres do fim do mundo.

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