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Cuidado, substantivo feminino




A história das relações humanas nunca termina em nós; porque aos poucos acontece que elas se tornam até muito fáceis, naturais e espontâneas; tão espontâneas, tão sem esforço, que não são mais riqueza nem descoberta nem escolha: são apenas hábito e comprazimento, embriaguez de naturalidade. [...] As relações humanas devem ser redescobertas e reinventadas todos os dias. Natalia Ginzburg, As relações humanas, in As pequenas virtudes

Para Ni, Naná e Nicole, com muito carinho.

Em plena pandemia, o que queríamos crer impossível se apresentou em sua probabilidade crescente: do alto de seus noventa-e-quatro-quase-noventa-e-cinco anos de idade, o corpo da minha avó materna deu sinais de cansaço. O que já inspiraria cuidados em quaisquer circunstâncias se tornou, em tempos de “novo normal” (céus, como eu odeio essa frase feita repetida por todos os cantos a todo tempo), uma tensão que beirava o insuportável. Ao que tudo indica, seu coração hipertrofiado (a biologia consegue ser tão metafórica às vezes) por décadas de pressão arterial alterada causou alguns coágulos que obstruíram vasos da perna. No curso do tratamento, ela desenvolveu uma arritmia cujo controle se mostraria difícil, lento, delicado, imprevisível.


Eu, que estou “trabalhando na universidade fechada”, abandonei meu apartamento, carregando comigo tudo o que havia de perecível na geladeira, uns tantos livros, as extensões eletrônicas do meu ego, e o autoengano sintomático de que conseguiria ser produtiva em meio à emergência familiar pandêmica. Isolada na casa da minha mãe, quase nada pude escrever, mas cumpri diligentemente as obrigações de “tia de pet” (é de propósito que recorro a essa autodesignação ridícula, entre outras coisas para sublinhar a ausência do “pai”), alimentando e medicando várias vezes por dia uma cãzinha idosa, também doente cardíaca crônica.


* * *


“Trabalhar no grupo fechado” é uma piada antiga, dessas que compõem meu “léxico familiar” há tempo suficiente para que eu possa rir dela sem precisar me perguntar por quê. Sempre tomamos como um dado absolutamente cômico que minha avó tenha conseguido, em circunstâncias levemente obscuras, ser transferida para uma instituição escolar que estava prestes a passar por uma demorada reforma. Sempre interpretamos esse feito como mais um dos sinais da propensão da matriarca aos comportamentos mafiosos.


Uns poucos anos atrás, por um acaso completo, descobri que o nosso riso encobria algo muito mais sombrio. Minha avó se formara como professora normalista em meados dos anos 1940 – um pequeno ato de rebeldia, ao menos para uma jovem do interior de Minas, que parecia querer pertencer a um universo maior que a minúscula cidade onde crescera. Naqueles tempos, a escola normal dava acesso a uma das poucas possibilidades de emprego consideradas dignas para as moças, ao menos quando as condições econômicas não as obrigavam a outras e mais mundanas ocupações. O comportamento rebelde, expresso também nos campeonatos de vôlei e no footing povoado por flertes, prosseguiu na recusa do candidato matrimonial preferido pelo meu bisavô e na escolha, talvez não muito feliz do ponto de vista genético, de se casar com um primo de primeiro grau que cuidara dela durante uma crise de hepatite. Após o casamento, ela se mudou para Belo Horizonte, e passou a somar as tarefas da sala de aula às da casa. Continuou a ensinar, mesmo sob os protestos do meu avô, que insistia em ser provedor único e exclusivo, em encerrar portas adentro a bela morena de olhos verdes que, se não tivesse sido resgatada por ele, provavelmente estaria assaltando bancos (como contam que ele gostava de dizer).


Foi só muito recentemente, foi só quando me dispus a de fato escutar a minha avó, que pude entender que ir “trabalhar no grupo fechado” foi um ato desesperado de uma mãe de quatro filhos pequenos, nascidos em intervalos que mal ultrapassavam o tempo fisiológico das gestações humanas, e que quase não podiam contar com o apoio do pai médico-e-professor-universitário. Foi a única saída que ela encontrou para salvar seu posto público, e garantir a aposentadoria que hoje constitui uma parte não desprezível da sua renda.


A rebeldia a que nós, mulheres, podemos aspirar tem, então como agora, seus limites.


* * *


Por indicação de uma amiga particularmente sensível às relações humanas, comecei este ano tão estranho lendo um livro sobre misoginia. A autora, uma filósofa australiana radicada nos Estados Unidos e com um pé forte na tradição analítica, procura fugir a certa percepção, tão difundida quanto equivocada, segundo a qual atos misóginos derivariam de um ódio generalizado contra as mulheres e teriam uma base eminentemente psicológica, individual. Não, argumenta Kate Manne: a misoginia é um fenômeno social, construído em torno de certa lógica. Mais: ela é fundamentalmente seletiva. A misoginia encontra seus alvos preferenciais não em toda e qualquer mulher, mas naquelas que ousam dizer “não”, naquelas que se recusam a prover os bens morais que a coletividade naturaliza como suas obrigações, naquelas que rejeitam o posto eterno e abnegado de cuidadoras. A misoginia teria, pois, certo teor corretivo e repressor. Ela estaria para o patriarcado assim como o poder de polícia está para a ideologia que sustenta um regime político.


O livro merece algumas das críticas que recebeu, ele não me parece levar suficientemente em conta dimensões da interseccionalidade (ainda que dedique belas passagens ao importante conceito de misogynoir, que põe em foco as especificidades da misoginia dirigida às mulheres negras), talvez ele não traga grandes novidades, mas a experiência de ler Down Girl teve algo de uma revelação. Finalmente encontrei certo sentido nas reações violentas com que são recebidas as mulheres que expressam ambições ao poder, aos mundos que extrapolam a domesticidade.


Ainda me assombra a passagem que aproxima os ataques misóginos dirigidos às políticas e aqueles que atingem professoras universitárias. Ambas são posições prestigiosas e profundamente corporificadas, cujo desempenho depende de performances públicas, escancarando a presença do feminino em lugares tidos como estrangeiros a ele. Manne me ajudou a olhar à minha volta e entender os comentários maldosos que invariavelmente se arrastam atrás dos concursos que resultam em aprovadas. A colocar alguma ordem nos tantos discursos em que as mulheres até podem ser brilhantes, mas só os homens são geniais.


A genialidade – ou melhor, o reconhecimento da genialidade – talvez exija ousadias incompatíveis com o cuidado. Ao menos com um cuidado que se faz atributo exclusivo de uma única configuração cromossômica.


* * *


Não quero, aqui, repisar o que já se tornou lugar-comum, falar de como a pandemia tem um custo desmesuradamente elevado para as mulheres, em especial aquelas em quem a opressão de gênero colide com outras linhas de força. Não quero falar das inúmeras sobrecargas mentais, laborais e físicas que se vêm acumulando sobre nossas existências. Não quero retomar o debate sobre o impacto desigual da emergência que vivemos sobre as carreiras acadêmicas de homens e mulheres. Não quero nem mesmo denunciar a previsível, mas nem por isso menos lamentável, explosão da violência doméstica – ainda que o atual cenário me faça recordar a forma impactante como se abre o livro de Kate Manne. Os episódios não fatais de estrangulamento se tornam, na narrativa da filósofa, expressões paradigmáticas da lógica da misoginia. Últimas ameaças que costumam preceder os feminicídios, esses atentados contra o direito de respirar são muito difíceis de provar. Deixam rastros evanescentes, raramente levados a sério pelas autoridades, mesmo quando identificados a tempo.


Quero enunciar, sabendo que jamais serei capaz de o resolver em qualquer nível que seja, o incômodo perante o lugar ambíguo em que nos coloca a contradição gramatical que faz e refaz cotidianamente do cuidado um substantivo feminino.


Quantas de nós voltamos e voltamos a nos imobilizar pela impossibilidade de escapar às obrigações de velar pelos outros, pela reprodução da vida? Quantas de nossas antepassadas – para me apropriar de uma sugestiva imagem do ensaio que Rosa Montero dedicou a Marie Curie – “nunca chegaram a irradiar”, mesmo carregando em si um enorme potencial para serem “mulheres radioativas”? Quantas terminaram e ainda terminam soterradas pelos escombros de seus próprios lares?


* * *


Mesmo que se eximam de umas tantas dores, aqueles que não se ocupam do cuidado jamais terão o prazer de ouvir o relato das alegres comemorações que minha avó, ainda solteira, partilhou com as amigas ao fim da Segunda Guerra Mundial. De presenciar as lágrimas que pipocaram enquanto ela assistia à transmissão online da missa em homenagem à padroeira de sua terra natal. De saber que ela reclamou da comida do hospital desejando a batata doce assada que eu preparara alguns dias antes. De a ver empolgada devorando o livro de memórias da Fernanda Montenegro, aberto após alguma insistência e sob o olhar atento da neta.


A perda é deles, é claro. Mas o peso desigual do cuidado – tão feminino e feminizado, e justamente por isso tão desvalorizado – não deixa de machucar os ombros, os joelhos, as colunas, as consciências.


Eu prometo fingir que isso não importa.


Eu prometo que vamos fazer uma grande festa quando tudo isso passar, vó.

 
 

Referências


GINZBURG, Natalia. As pequenas virtudes. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

MANNE, Kate. Down girl. The logic of misogyny. Nova York: Oxford University Press, 2018.

MONTERO, Rosa. A ridícula ideia de nunca mais te ver. São Paulo: Todavia, 2019.

 


Mariana de Moraes Silveira é professora de Teoria da História e História da Historiografia na Universidade Federal de Minas Gerais.

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