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  • Foto do escritorHuMANAS: Pesquisadoras em Rede

Combate à tortura

Pequena homenagem à mulher


Obra A voz do ralo é a voz de Deus. A performance do coletivo És Uma Maluca foi parte da exposição Literatura Exposta, na Casa França-Brasil, Centro do Rio de Janeiro, em 2019. Ela foi inspirada no conto "Baratário", de Rodrigo Santos, escritor de São Gonçalo (RJ). O conto versa sobre uma mulher torturada durante a ditadura com baratas introduzidas na vagina. A performance incluía uma caixa de som que soltava frases pronunciadas por Jair Bolsonaro durante sua vida política. Com o veto da Secretaria Estadual de Cultura, o áudio foi trocado por receitas de bolo – analogamente ao que os jornais costumavam fazer sob a ditadura militar, quando alguma matéria era censurada.


A escolha do dia 26 de junho, pela Organização das Nações Unidas, como o Dia Internacional de Luta Contra a Tortura, em 1997, representa uma celebração através da sinuosa via das libertações que trazem as marcas da lembrança e, em momentos como o atual, o vigor do alerta. Ao longo de toda a história, há registros de sevícias notoriamente cruéis, como há também aqueles que apontam para formas de controle, mediante os recursos da religiosidade ou da lei. Na tradição bíblica isso se alicerça no versículo “Se alguém ferir o seu escravo ou a sua serva com uma vara, e o ferido morrer debaixo de sua mão, será punido.” (Êxodo 21, 20). No entanto, os suplícios medievais, os campos de concentração e extermínio, a ferocidade das guerras e das ditaduras militares são momentos históricos de peso no que se refere à prática da tortura e à luta contra ela. No mundo moderno e contemporâneo, o artigo 5º. da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão tornou-se um marco no combate à tortura mesmo em contexto patriarcal, ainda que tal prática não tenha sido jamais extinta. Em âmbito mundial, somam-se várias Declarações de Direitos Humanos e acordos como o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, a Convenção Americana de Direitos Humanos, a Convenção Internacional Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotada pela ONU em 28 de setembro de 1984, entre outros, merecendo destaque esta última por suas reverberações.


Em todas as situações em que há tortura, é importante ressaltar, a condição feminina ocupa lugar especial, uma vez que o gesto torturador incide diretamente nas características específicas do corpo da mulher, sua sexualidade e seus saberes: é o caso das bruxas supliciadas nos processos inquisitoriais, das mulheres e meninas estupradas por exércitos inimigos e amigos em guerra, dos abusos sexuais e violações físicas e simbólicas nos porões das ditaduras...


No caso do Brasil, a tortura entranhada em nossa cultura – aquela baseada em castigar o outro por simplesmente ser o outro – precede e transcende a abrasiva história recente. Largamente praticada da colonização aos dias atuais, seja por inquisidores, senhores de escravos, coronéis oligarcas e principalmente pelo Estado ditatorial, atinge especialmente as parcelas mais vulneráveis da população: pobres, negros, indígenas, LGBT+, presidiários, pacientes psiquiátricos, moradores de rua, etc. E, em cada um desses grupos, a tortura é exercida sobre o corpo da mulher não apenas por suas escolhas políticas, ideológicas, existenciais, mas por suas escolhas sexuais consideradas “desobedientes” ou “subversivas” à ordem, ou simplesmente por sua biologia diferente da masculina. Como triste exemplo, que nos foi dado pelos depoimentos de presos políticos sob a ditadura militar (1964-1985) recolhidos pelo então arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, no projeto/livro Brasil: Nunca Mais, e mais recentemente ouvidos nas audiências públicas da Comissão Nacional da Verdade e das Comissões Estaduais da Verdade – como os relatos de Dulce Pandolfi e Lúcia Murat – temos os casos de filhos levados a sessões de tortura, mulheres seviciadas em frente a seus maridos e vice-versa, seios queimados com cigarros, baratas introduzidas em vaginas, violações sexuais sem nome e de dura memória.


Todo ato de tortura, como observou Hannah Arendt em As Origens do Totalitarismo, busca ser um domínio total sobre o outro através de sua dor. Não raro, produz-se uma dilaceração ou mesmo cisão entre o corpo e a psique daquele que a sofre, os sentimentos e pensamentos tornam-se de todo incompatíveis com a violência física e moral a que o corpo é submetido. Os traumas que disso advêm nem sempre são sanáveis, e podem gerar consequências intra e intergeracionais, conforme mostram os estudos das equipes de Clínica e Política do Cone Sul.


O Brasil, seguindo os movimentos em todo o mundo em defesa do respeito ao ser humano – em seu direito à diferença e à liberdade de escolha – assinou vários tratados internacionais e sua legislação estipula que não cabe anistia, graça, indulto ou fiança para o crime hediondo de tortura (ver Lei 8072/1990).


Contudo, enquanto vivermos em tempos voltados aos processos de silenciamento, os quais se adensam pela violência de Estado, a tortura não estará apenas vinculada ao período da ditadura e dos seus aparatos de terror, mas igualmente estará presente no cotidiano. Ainda pior, tem sido defendida pela extrema direita atualmente no poder, e o governo Bolsonaro aplica-se paulatinamente a destruir os mecanismos de combate à tortura, de defesa dos Direitos Humanos e de respeito à memória dos que foram um dia sujeitados à tortura, alguns dos quais até a morte.


Hoje, a reflexão suscitada por esta data surge revestida de extraordinária urgência, reclamando olhares atentos. A tortura é crime de lesa-humanidade e deve ser fortemente combatida em qualquer situação e em quaisquer de suas formas.

 
 

Aimée Schneider possui formação dupla em Direito e em História, ambas pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é doutoranda em História na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e integrante da Comunidade de Estudos de Teoria da História (COMUM/UERJ).

Beatriz Vieira é Professora de Teoria da História na UERJ/Maracanan, com mestrado em Literatura Brasileira e Doutorado em História. Núcleo de Pesquisa COMUM - Comunidade de Estudo de Teoria da História da UERJ.

Iris Figueiredo é mestranda em História (PPGH/UERJ) e graduada em Comunicação Social (ECO/UFRJ). Autora de quatro livros de ficção, o mais recente publicado em 2018, também atua como editora de livros acadêmicos na EdUERJ.

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