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Caso Mari Ferrer: A justiça tarda e falha (para as mulheres)
Isadora Costi Fadanelli

Quando estudamos gênero e suas dinâmicas há um tempo, algumas coisas, mesmo que brutais e indefensáveis, parecem apresentar uma certa lógica.
Por exemplo, nós, mulheres, esperarmos "justiça" de uma instituição calcada em valores patriarcais e machistas é algo que foge à lógica. Por outro lado, a sentença proferida no caso da Mari Ferrer, ilustra muito bem porque não podemos contar com essa justiça - dos homens, feita por e para eles próprios.
Mari Ferrer foi estuprada pelo empresário André Aranha em dezembro de 2018, em um clube de elite na cidade de Florianópolis. Mari Ferrer foi dopada (com a ajuda de suas "amigas" que estavam com ela no local) e violentada dentro do próprio clube. Existem filmagens de seu agressor conduzindo-a ao local. Ela prestou queixa. Foi encontrado sêmen do agressor em seu corpo. Havia sangue em suas roupas. Havia testemunhas. Havia o RELATO DA VÍTIMA. Havia o exame de corpo de delito.
Mas, historicamente, como a "justiça" tem tratado as vítimas de estupro?
As primeiras legislações domésticas sobre o estupro tratavam-no como um crime contra a propriedade, mais especificamente, a propriedade masculina (Tonkin, 2004, p. 243). De acordo com o código de Hamurabi, caso uma mulher casada fosse vítima de estupro, ela seria condenada, juntamente com seu agressor, pela prática de adultério (Brownmiller, 2013, pos. 232-256). Por muito tempo, a virgindade permaneceu como condição essencial para a persecução do crime de estupro. Foi no século XIII que o estupro passou a ser considerado como um crime de interesse público, deixando de ser apenas um “assunto de família e uma ameaça à propriedade” (Brownmiller, 2013, pos. 331-445).
E, curiosamente, do século XIII ao século XXI, parece que poucas mudanças ocorreram. Juízes ainda mantêm fortes suspeitas sobre denúncias feitas por vítimas de estupro. As legislações criminais sobre a condenação do estupro continuaram a ser fortemente influenciadas pela “ameaça da invenção feminina”. Acreditava-se que as mulheres tinham razões especiais – a prática de sexo antes do casamento, infidelidade, gravidez ou doenças sexualmente transmissíveis - para prestar falsas acusações de violência sexual (Eriksson, 2011, p. 42-43).
A defesa do agressor, no caso Mari Ferrer, adulterou fotos que ela havia postado em suas redes sociais, para fazer com que ela aparecesse sem a parte de cima do biquíni. Afinal, suscitar a convicção de que a vítima é promíscua – conceito de utilização extremamente problemática, visto que um determinado comportamento feminino considerado promíscuo pela moralidade dominante não receberia esse rótulo, se performado por um homem - tem constituído uma tática efetiva para desviar a atenção que deveria recair sobre o acusado (Fitzgerald, 1997, p. 646-647). Tal estratégia, associada ao tabu da castidade feminina, tão arraigado na sociedade e que impõe uma moralidade pautada pelo encobrimento de certos corpos femininos, é perspicaz para fins de reprovação do comportamento da vítima. Sob tal perspectiva, a exibição do corpo feminino só pode significar, de forma lastimável, que a mulher tem a intenção de provocar seu agressor; por isso, o ataque sexual seria completamente “justificável”.
Essa lógica da dominação masculina é perfeitamente orquestrada dentro do Poder Judiciário: requerimentos de prova, em muitas jurisdições, consistem na obtenção de evidências do histórico sexual da vítima, a fim de demonstrar que, caso ela possuísse um comportamento considerado promíscuo, isso significaria que, provavelmente, ela teria consentido ter relações sexuais com o réu.
No caso de Mari Ferrer, o juiz da 3ª Vara Criminal de Florianópolis absolveu o estuprador, alegando ausência de “provas contundentes nos autos a corroborar a versão acusatória”. Prossegue o magistrado: "melhor absolver cem culpados do que condenar um inocente".
O problema é que essa frase é aplicada somente em casos de violência contra mulher. Proteger os homens contra supostas falsas alegações de estupro sempre foi uma diretiva de extrema importância nesses casos. Tribunais assumiram que a falta de resistência física à agressão sexual sofrida implicaria em ter a vítima consentido, ainda que implicitamente (Byrnes, 1998, p. 283). Conforme é possível observar em uma recomendação dirigida a policiais norte-americanos, no ano de 1975: “Cuidado com garotas que estão grávidas ou chegam tarde da noite em casa; tais pessoas são conhecidas por alegarem terem sido vítimas de estupro...” (Temkin apud Askin, 1997, p. 219). Dessa forma, presumia-se, automaticamente, que uma mulher estava mentindo sobre ter sofrido crimes de violência sexual, a menos que fossem aparentes sinais de lesões físicas, imediatamente percebidas a olho nu (Askin, 1997, p. 219).
Estamos na terceira década do século XXI e as vítimas de violência sexual continuam a ser desacreditadas. Abusadores continuam a ser absolvidos - se forem ricos e brancos, a absolvição é garantida. Quem pode fazer justiça por Mari Ferrer somos nós, denunciando - e lutando contra - a cultura do estupro, a seletividade do sistema penal (especialmente nos crimes de violência contra a mulher), e clamando pela revisão jurídica, pela instância superior, de tal decisão absurda. Vamos ser a voz que Mari Ferrer não teve no processo - silenciada por todos os homens que continuam a perpetrar, no sistema judicial, práticas machistas e patriarcais.
#CasoMariFerrer #Gênero #Justiça #Violência
Referências
ASKIN, Kelly Dawn. War Crimes Against Women: Prosecution in International War Crimes Tribunals. Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 1997.
BROWNMILLER, Susan. Against our will: Men, women, and rape. Open Road, 2013. E-book.
BYRNES, Craig T. Putting the focus where it belongs: Mens rea, consent, force, and the crime of rape. Yale Journal of Law and Feminism, v. 10, 1998, p. 277-305.
ERIKSSON, Maria. Defining rape: emerging obligations for states under international law? Leiden: Martinus Nijhoff Publishers, 2011.
FITZGERALD, Kate. Problems of prosecution and adjudication of rape and other sexual assaults under international law. European Journal of International Law, v. 8, 1997, p. 638-663.
TONKIN, Hannah. Rape in the International Arena: The Evolution of Autonomy and Consent. University of Tasmania Law Review, v. 23, 2004, p. 243-263.