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BLACK IS KING, apesar da Lilia Schwarcz



Cena do filme Black is King. Imagem retirada do site do jornal La Verdad.



No dia 02 de agosto de 2020, a historiadora e antropóloga Lilia Schwarcz (USP) publicou um texto, na Folha de São Paulo, sobre o filme Black is King, produzido e lançado no último dia 31 de julho pela cantora Beyoncé. O artigo traz como título de chamada a seguinte afirmação: “Filme da Beyoncé erra ao glamourizar negritude com estampa de oncinha”. Para além do famoso “cancelamento”, ação problemática e que toma conta das redes sociais e que se manifestou contra a Lilia Schwarcz em suas contas no Twitter e no Instagram, precisamos refletir acerca da seguinte questão: por que Black is King é importante? Ontem, depois que expressei a minha ideia em determinada rede social, alguém me perguntou se eu já havia lido as produções de Lilia Schwarcz – talvez seja o mais novo “você sabe com quem está falando?”. Respondi que já a havia lido e a utilizado como referências bibliográficas em artigos científicos e outros escritos para a pós-graduação e que, ainda assim (e por isso), endossava a pertinência em travar esse diálogo.


Black is King (2020) é um filme musical dirigido e escrito pela cantora americana Beyoncé que conta a história da população negra a partir de nossas referências. No artigo na Folha, Lilia Schwarcz também escreve a partir de suas referências que não são as mesmas de Beyoncé. Escrevendo de um lugar específico, marcado por sua branquitude e pelo seu discurso acadêmico – e precisamos relembrar aqui que a academia é um espaço branco que ainda nega o privilégio da fala a pessoas negras – Lilia Schwarcz parece ter ignorado a importância da produção Black is King para a população negra. Muito embora a intelectual teça alguns elogios à obra e tenha alegado em seu Twitter que “é um texto muito mais elogioso do que crítico”, o que chama atenção no escrito é o modo como a historiadora aponta o “erro” cometido pela Beyoncé ao glamourizar a negritude e ao conferir pompa à luta antirracista. Precisamos questionar, com dada urgência, o que pode a negritude então? Ou melhor, quem se sente autorizado para dizer o que pode a negritude e por que se sente?


A jornalista britânica Reni Eddo-Lodge, no livro Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça, nos auxilia ao exercício da reflexão quando diz que “não tenho mais essa conversa com gente branca, porque geralmente estamos chegando a ela vindo de lugares completamente diferentes, então eu não consigo conversar com eles sobre os detalhes de um problema se eles nem sequer reconhecem que existe” ou que reconhecem há pouco tempo, como é o caso de Lilia Schwarcz que, em 2006, se posicionou contra as cotas raciais para o acesso ao ensino superior no Brasil. Ainda utilizando o conhecimento de Reni Eddo-Lodge, as críticas enunciadas pela historiadora nos rememoram a tal “desconexão emocional” que as pessoas brancas exibem quando uma pessoa de cor articula sua experiência. E Black is King é exatamente sobre isso: experiências. É válido ressaltar que o filme não traz apenas uma massiva representatividade negra entre seus participantes, mas insere mulheres e homens pretos em toda lógica de produção da obra. Portanto, são experiências de negros e negras sobre negros e negras e, sobretudo, para negros e negras.


O filme, com duração de aproximadamente 1h 25 minutos, é muito mais do que estampas de oncinhas e leopardo, glamourização ou África estereotipada. Trata da memória da ancestralidade negra como empoderamento afroepistemológico de toda uma comunidade, trazendo à tona referenciais que estão vinculados às origens africanas e que insurgem a partir das experiências conflitantes, de incômodos, de corpos negros em uma sociedade racista. As referências que percorrem a narrativa são enunciadas pela voz e pela experiência de uma mulher. Como a própria Lilia Schwarcz reconhece, a personagem Nala cumpre um papel de centralidade. Segundo Lélia Gonzalez, as mulheres negras são as grandes enunciadoras de uma memória cultural sendo capacitadas à construção de outras relações de saberes. É, portanto, a voz de uma mulher preta que lembra ao sujeito masculino negro a importância da busca pela africanidade. O afrocentrismo percorre todo o longa-metragem e é significativo no modo como se constrói a narrativa de busca por sua identidade. Valendo-me das palavras da teórica Grada Kilomba, em Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano, Black is King materializa o sentido do “somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras e autores e autoridade da nossa própria realidade” do início ao fim.


A cena de início faz alusão à história de Moisés, no Egito antigo. O mesmo Egito que foi embranquecido na história e deslocado da história da África aparece como a origem. No ano de 1954, o historiador e antropólogo senegalês Cheik Anta Diop, na obra Nações negras e cultura, já argumentava que a cultura egípcia era uma cultura negra. É a isso que Beyoncé nos convida: a reorientar as nossas perspectivas para além do olhar ocidental. Esse esforço é completado pela proposta afrofuturista que o filme aborda. O afrofuturismo, estética cultural que combina elementos da fantasia, da ficção científica e da história, que surgiu na década de 1960, visa abordar as narrativas a partir da perspectiva negra, tanto africana quanto diaspórica. Nesse caso, retrata os dilemas negros e, ainda, interroga os eventos históricos relacionados ao racismo não apenas norte-americano, mas global.


Sem deixar de lado a abordagem da escravidão – tão comum quando se fala em população negra –, Beyoncé escolheu não trazer a memória da africanidade pela marca e trauma da violência, mas pela celebração e pelo reconhecimento de uma realeza, porque sim, fomos e somos reis, rainhas e reinados. Mas a mensagem antirracista que Black is King carrega supera a realeza, que também é um símbolo importante nas narrativas africanas, e é capaz de promover uma autodefinição por excelência. Patrícia Hill Collins, em Pensamento Feminista Negro, pensa a autodefinição como a capacidade de rejeitar a suposição daqueles que estão em posição de autoridade e de validar o poder de mulheres negras como sujeitas humanas que elaboram imagens de si e da comunidade. Se, ao deparar com essa produção, Lilia Schwarcz duvida “que os jovens se reconheçam”, esquece o poder da autodefinição apresentada como imagem positivada da e para a população negra. Com ou sem glamour, luxo, brilho da realeza e estampas de animais, preciso refutar a consideração da historiadora e dizer do impacto de Black is King para os jovens que assistiram ao filme. A produção foi aplaudida por meus alunos e alunas secundaristas, bem como foi rapidamente reconhecida pela minha filha, de três anos de idade, quando soltou a afirmação “mamãe, elas se parecem comigo” ao ver a Blue Ivy e demais crianças negras que compõem a cena da música Brown skin girl que exalta a beleza da negritude.


A “elegia da procura da africanidade” enquanto busca empreitada pelo personagem masculino negro, que lembra o Simba de O Rei Leão, se apresenta como algo vivo e que não diz respeito apenas ao passado de “um lugar perdido na África”. A africanidade vem como algo mais amplo capaz de transcender fronteiras africanas, atravessar o Atlântico e alcançar a América de Beyoncé, em suma, como diria a historiadora Beatriz Nascimento, a potência de uma africanidade que é transatlântica. Potência que Lilia Schwarcz não reconhece e nem pode reconhecer.


A experiência de assistir a Black is King é de despertar um reconhecimento diante das ricas e múltiplas referências abordadas na película, reconhecimento possível porque nos é contado por nós mesmos. Como devolutiva ao convite sobre “quem sabe seja a hora de Beyoncé sair um pouco da sua sala de jantar e deixar a história começar outra vez e em outro sentido”, feito pela historiadora e antropóloga ao final de seu texto, respondo que: Black is King é o outro sentido, professora Lilia Schwarcz. Sendo assim, convido eu, a autora do texto publicado na Folha de São Paulo, a sentar na sala de jantar e a nos permitir falar. Maria Castro Varela e Nikita Dhawan, em Postkolonialer feminismus und die Kunst der Selbstkritik, lembram-nos de que o ato de falar deve ser uma negociação que envolve as atividades de fala e de escuta; logo, só podemos falar quando e se a nossa voz é ouvida. Convido Lilia Schwarcz a ouvir e sentar na sala, mas não na sala de jantar onde estamos no lugar de empregados ou dispostos como objetos de estudos servindo senhores brancos e senhoras brancas, mas sim no espaço onde somos proprietários do palacete e, inclusive, sujeitos da nossa própria história.

 
 

Referências


CASTRO VARELA, Maria Del Mar e Dhawan, Nikita. Postkolonialer feminismus und die Kunst der Selbstkritik. IN: STEYERL, Hito e RODRIGUEZ, Encarnación Gutiérrez (Org.). Spricht die subaltern Deutsch? Migration und postkoloniale Kritik. Münster: Unrast Verlag, 2003, p. 270-290.

COLLINS, Patricia Hill. O poder da autodefinição. IN: ___. Pensamento feminista negro. São Paulo: Boitempo, 2019. Cap. 5. P. 217-254. Tradução Jamile Pinheiro Dias.

DIOP, Cheik Anta. Origem dos egípcios. In: História Geral da África II. África Antiga. Editado por Gamal Mokhat. Brasília: Unesco, 2010. P.32.

EDDO-LODGE, Reni. Por que eu não converso mais com pessoas brancas sobre raça. Belo Horizonte: Letramento, 2019. Tradução de Elisa Elwine.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. IN: HOLLANDA, Heloisa Buarque (Org.) Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. Tradução Jess Oliveira.

RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa oficial, 2006.

 


Maiara Juliana Gonçalves da Silva é mestre em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e, atualmente, é aluna do doutorado pelo Programa de Pós-graduação em História na mesma instituição. É professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), onde leciona a disciplina de História na Escola Agrícola de Jundiaí.

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