HuMANAS: Pesquisadoras em Rede
A vida mentirosa do Instagram
Sobre A vida mentirosa dos adultos, de Elena Ferrante
Renata Dal Sasso Freitas

Vênus ao Espelho, Diego Velázquez, c. 1648, National Gallery, Londres.
Lembro de quando fiquei feia. Tinha dez anos e precisei fazer a carteira de identidade para ir com minha família passar uns dias no Uruguai, nas férias de verão. Ao receber minhas 3x4 do fotógrafo, constatou-se que eu estava esquisita. E assim, naquele instante, estabeleceu-se, ao menos para mim, que eu estava crescendo e ficando, se não meio feiosa, nada fotogênica.
Esse episódio foi apenas o início de uma relação um tanto dismórfica que desenvolvi com minha aparência, a respeito da qual às vezes tenho honestamente tantas dúvidas quanto as que tive acerca da de Giovanna, protagonista de A vida mentirosa dos adultos, de Elena Ferrante, lançado no Brasil ano passado pela editora Intrínseca, com tradução de Marcello Lino. Digo isso bastante consciente de ter sido sempre o que chamam de “uma mina padrãozinho” (branca, magra), mas que passou por alguns perrengues na adolescência, com flutuações de peso e cabelos estranhos. Lembro de, entre outros episódios, ter sido chamada uma vez de “porco de óculos” por um colega na oitava série. Olhando no espelho, ainda hoje há dias em que acho que sou aquela menina.
Como Giovanna, essa napolitana apenas quatro anos mais velha do que eu, sou filha de professores e de uma família de classe média. Diferentemente de Giovanna, não foi uma comparação cruel com uma tia pouco convencional que fez eu me tornar consciente da minha falta ou não de beleza. Mas, como ela, me vi na adolescência cada vez mais me atendo à ideia de que eu precisava ser inteligente, senão brilhante, já que aparentemente não seria bonita (como ela, também não era uma aluna exemplar, preferindo ler romances a estudar física por léguas). Apesar de afirmar prezar apenas pelo meu intelecto, desenvolvi uma relação bastante complicada não apenas com meu corpo, como já disse, mas também com o feminino, principalmente esse feminino por vezes competitivo e abrasivo que aparece nos romances de Ferrante, que não parecia valorizar as coisas que me interessavam e pelo qual ao mesmo tempo eu queria, sim, desesperadamente ser aceita.
Assim como Minha amiga genial (2015), A vida mentirosa dos adultos traz em seu cerne as percepções de sua protagonista-narradora sobre as demais personagens e suas relações. “Observe bem os seus pais”, recomenda sua tia Vittoria, a solteirona feia, o que faz Giovanna abrir uma caixa de Pandora sobre o mundo dos adultos. Como Lenù da Tetralogia Napolitana, Giovanna por vezes não parece se dar conta do seu potencial intelectual, de sua beleza física ou mesmo do resultado de suas ações, e também avalia erroneamente as pessoas ao seu redor, principalmente as mulheres com quem se compara, para mais ou para menos.
A vida mentirosa dos adultos trata também do processo por que todas nós passamos, em momentos diferentes da vida, de sermos obrigadas a nos definir enquanto certo tipo de mulher, mesmo que fique evidente que podemos ser mais de um deles ao mesmo tempo, inclusive contraditoriamente. Essas escolhas – quando possíveis – acabam se refletindo inclusive na nossa aparência física, naquilo que podemos controlar dela. A certa altura da narrativa, por exemplo, Giovanna decide que quer afastar as demais pessoas de si o máximo que pode e, por isso, adota certo tipo de vestimenta, investindo no preto, carregando na maquiagem, tornando-se o que ela julga ser mais temível e detestável. Quem nunca, pensei.
O enredo de Ferrante se passa entre o final dos anos 1980 e o início dos 90: o pai da protagonista, um professor de história e filosofia em uma escola privada, discute calorosamente com seu melhor amigo, entre outros assuntos, a famosa tese de Francis Fukuyama. Contudo, enquanto lia, me pegava o tempo todo não tanto refletindo a respeito da minha adolescência, que se passou alguns anos mais tarde, mas sim na relação que temos com nossa aparência física hoje, principalmente através das redes sociais.
Quando fiquei “feia”, passei aos poucos a detestar fotos. Tirá-las estava bem na hora, mas depois era vê-las uma vez para não mais. Poucas fotos minhas me satisfaziam. A maioria parecia clamar por ser destruída ou enterrada em uma gaveta, de modo que tenho pouquíssimas fotos minhas dos últimos vinte anos e levei muito, muito tempo para entender a necessidade que as pessoas sentem de tirar selfies. Uma vez fiz esse comentário em sala de aula, afirmando que não entendia por que alguém ia querer ver uma foto da minha cara. Uma aluna rebateu: “Mas não é pros outros, professora, é porque tu tá te sentindo bonita.” Que ideia.
Depois de um tempo, descobri que a selfie nada mais é do que um exercício de controle. Eu escolho o ângulo, manipulo a luz e assim determino como melhor me representar para outrem. Se nada disso funcionar, hoje os celulares e aplicativos de compartilhamento de fotos dispõem de filtros. Quem tiver tempo para isso pode usar softwares de edição. O problema é que, obviamente, essas fotos não são um reflexo da realidade e acabam por criar expectativas errôneas nas pessoas sobre seus próprios corpos, com base na aparência alheia e no que veem de si no celular. Em um desdobramento um tanto distópico disso tudo, uma parcela cada vez mais crescente de jovens que dispõem dos recursos para isso está buscando intervenções cirúrgicas para ficar com o que chamam de “cara de Instagram”, uma combinação de traços específicos retirados de diferentes etnias e que se encaixariam no que, presumo, seja o padrão de beleza atual. No Brasil, essa é uma questão ainda mais preocupante, quando consideramos que é o país que mais realiza cirurgias plásticas no mundo, de acordo com a Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética, algo que não é de agora. É muito difícil não conhecer alguém que não tenha passado por um procedimento desses; conheço, por exemplo, quem tenha se submetido a isso quando ainda no colégio. No entanto, as redes sociais apenas acentuam essas questões: recentemente elas foram sacudidas pela morte da influencer Liliane Amorim, de 26 anos, como consequência de uma lipoaspiração. A vida mentirosa do Instagram está matando as mulheres.
Assim sendo, na contracorrente da possibilidade de se enganar os outros e a nós mesmas a respeito das aparências, milhares de contas nesse e em outros aplicativos se propõem a justamente mostrar como esse tipo de manipulação da realidade ocorre, visando combater os efeitos que isso tem na saúde mental de, principalmente, jovens mulheres. Esses perfis, muitos de influencers de fitness, defendem uma relação mais saudável com nossos corpos, em um discurso que, no entanto, tem sido cada vez mais cooptado e capitalizado pelo mainstream do mercado de produtos de beleza. Falo da chamada “real beleza” ou da “normalização de todos os corpos”, defendidas em nome da inclusão, da diversidade e também da saúde física e mental, ao mesmo tempo em que, ironicamente, também tentam vender cremes clareadores para nossas axilas.
Esses tempos, uma amiga desabafou no Twitter sobre o sonho que seria apenas existir, sem que a beleza física fosse a base da autoestima das mulheres. Era um comentário que vinha sobre outra postagem, de alguém que dizia ser saudosa dos anos 90, quando se era ou feia ou bonita e se seguia adiante na vida – uma reflexão advinda justamente dessa pressão por se achar bonita, não importa como, e, mais do que tudo, apresentar isso online.
A vida mentirosa dos adultos aponta mais ou menos para o quanto essa questão é inescapável. Mesmo em seu mundo ainda analógico, a beleza física parece ser fundamental para Giovanna se auto-definir, mais do que ler Proust ou outros livros complicados: “Cuidado com o que você diz, meu rosto já mudou por causa do meu pai e me tornei feia; não brinque de mudá-lo você também, tornando-o bonito,” ela reclama, mentalmente, para o rapaz bem mais velho por quem está apaixonada. Depois de um instante de dúvida, no entanto, decide jogar tudo para o alto, se tornar uma adulta “como jamais havia acontecido com nenhuma outra mulher.” “Éramos ambos feios”, ela afirma em dado momento do desfecho do romance, quase aliviada, em seguida dizendo, “Ainda bem que não tínhamos um espelho.”
Contudo, a verdade é que isso não deveria importar. Por outro lado, estou plenamente ciente de que eu cogitar isso – não me importar tanto com minha aparência – é um privilégio de raça e de classe. Posso, em meu país, ir ao supermercado tranquilamente com o cabelo desgrenhado e com roupas de fazer faxina, como de fato faço na maioria das vezes. Não deveria ser assim, mas é, por motivos que escapam à mera ideia de beleza. Explodir esse padrão ainda é importante, além do racismo e do classismo estruturais, mesmo que a ideia e o imperativo de beleza sejam incômodos e por vezes exaustivos: o ideal, para além de vivermos em condições mais igualitárias, seria que não precisássemos ter de ser nada além de nós mesmas e que não precisássemos compensar por coisas que, de acordo com padrões inverossímeis, nos faltam, como Giovanna sentiu que teria de fazer e como muitas de nós chegam a até mesmo morrer tentando alcançar.
Giovanna teria 41 anos hoje. Fico me perguntando como seria o Instagram dela, se ela o tivesse.
#Literatura #AutoImagem #Internet
Referências
FERRANTE, Elena. A amiga genial. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Biblioteca Azul, 2015.
FERRANTE, Elena. A vida mentirosa dos adultos. Trad. Marcello Lino. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
