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“A nossa luta aumentou na pandemia": entrevista com Ana Paula Oliveira

"Temos que estar mais fortes e procurar, de todas as formas, nos manter vivos”, diz a militante das Mães de Manguinhos e do Fórum Social de Manguinhos



Ana Paula Oliveira no Ato Vidas Negras Importam, Rio de Janeiro, 31/05/2020. Foto de Katja Schilirò


Texto originalmente publicado no blog O corpo informa, de Nina Zur.

A seguir, uma conversa que tive, virtualmente, com Ana Paula Oliveira [1], cofundadora da rede de Mães de Manguinhos e integrante do Fórum Social de Manguinhos. Conversamos sobre coronavírus, violência de Estado, racismo estrutural, resistência e como esses fenômenos se relacionam e de que forma os movimentos de favela estão reagindo à pandemia. Agradeço à Ana Paula pela disposição, generosidade e exemplo de luta.


Nina Zur: A pandemia do novo coronavírus está especialmente dura no Brasil. No Rio, temos governos municipal e estadual que, juntos ao governo federal, significam o pior cenário possível para vivenciar uma crise sanitária dessa dimensão. Ficar em casa não é um direito quando não se tem acesso à renda, saneamento, saúde, segurança.

Como está a situação em Manguinhos durante a pandemia? As muitas formas de violência estatal aumentaram?

Ana Paula Oliveira: Aqui em Manguinhos, a situação da maioria das pessoas durante a pandemia é bastante crítica. Como você mesma falou, nem todo mundo consegue acessar o direito de ficar em casa. Muitas pessoas estão tendo que se virar para conseguir pelo menos o que comer.

Muitas pessoas estão desempregadas, mães solteiras com seus filhos em casa. As creches não funcionam, as escolas não funcionam. As crianças que estudam nas redes municipal e estadual de ensino não estão tendo aulas, essas aulas virtuais que os colégios particulares conseguem fazer de uma forma satisfatória. É mais uma violência que nossos filhos sofrem.

Outra violência de que tivemos conhecimento foi o caso, aqui em Manguinhos, de um senhor que faleceu dentro de casa e a família teve que ficar dois dias com o corpo porque o rabecão não veio. E mais uma forma de violência é não haver garantia de testagem em massa para covid-19. Não há oferta de exame. Nem os planos de saúde cobrem.


N.: Como os moradores estão se organizando e enfrentando esse período tão difícil?

A.: Se é difícil para as outras pessoas, para nós, que já sofremos com a ausência do Estado, fica ainda mais difícil. Acaba sendo o “nós por nós” mesmo: são as organizações que existem que acabam apoiando, são os próprios moradores que se acolhem, e assim a gente vai resistindo a todos os tipos de violência.

Eu e as outras mães do movimento das Mães de Manguinhos e as meninas do Fórum Social de Manguinhos nos juntamos e fizemos um mapeamento das pessoas em situação mais crítica durante a pandemia, e elaboramos uma mobilização para arrecadação de cestas básicas.

Com todo cuidado com a nossa saúde e segurança, usando máscaras, fazemos a distribuição dessas cestas básicas em dias específicos. A gente vai porque não tem como ficar em casa sabendo que tem gente com fome. Não tem um estado, um município para apoiar essas pessoas, que contam com a nossa ajuda.


N.: Muitas mães vítimas de violência de Estado relatam que o encontro com outras mães e a luta diária são as suas fontes de vida, o que faz com que consigam suportar a dor da perda dos filhos. Como esse período de isolamento social afeta a sua vida e a rede de mães de Manguinhos? De que maneiras vocês contornam a impossibilidade material do encontro, da luta mais corpórea?

A.: A partir do momento em que perdemos nossos filhos de forma violenta, nos apoiamos em outras mães que passaram pela mesma dor, que conhecem a nossa dor. Esse contato com as outras mães é muito importante, esse acolhimento mútuo é fortalecedor. A gente pode se abraçar, chorar junta, sorrir junta, lembrar dos nossos filhos, de como eles eram lindos, felizes. A gente se acolhe e se fortalece entre abraços.

Infelizmente, esse isolamento social está impedindo que isso aconteça, mas a gente procura formas de driblar esse impedimento. Uma das formas tem sido o celular mesmo. Temos um grupo de WhatsApp de mães e familiares de vítimas de violência de Estado, também seguimos conversando com outras mães que precisam de uma atenção maior, deixamos essa abertura para conversar a qualquer hora.

A gente também tem que se ajustar a tudo o que está acontecendo. Nós nos juntamos às psicólogas do NAPAVE (Núcleo de Atenção Psicossocial a Afetados pela Violência de Estado), que nos acolhiam, para participarmos ativamente desse acolhimento, juntas, a outras mães e familiares que tenham sofrido algum tipo de violência estatal. A gente já começou a fazer esse acolhimento online e está sendo muito bom. Mesmo virtualmente, todas nós saímos bastante fortalecidas.

Fora isso, participamos de lives, debates virtuais, fazemos mobilizações através das redes sociais, estamos participando de reuniões virtuais da organização do Julho Negro (26/30 de julho). Também fizemos um vídeo para a campanha da ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 635, a ADPF das favelas.

A gente se organiza para fazer o possível, porque as violações não pararam, então temos que lutar contra essa doença horrível e continuar lutando contra todas as violações às quais a gente já resistia. A nossa luta aumentou na pandemia. Temos que estar mais fortes e procurar, de todas as formas, nos manter vivos.


N.: George Floyd foi morto comprando cigarros. Seu filho foi morto levando um doce para a avó. Muitos jovens negros no Brasil são mortos pelas costas. Vocês estiveram nos atos antirracistas, contra o genocídio do povo negro, dos últimos meses?

A.: Estivemos no ato “Vidas negras importam”, que aconteceu em frente ao Palácio Guanabara no dia 31 de maio. É muito sufocante ver essas violências se repetindo, pessoas sendo mortas dentro de casa, operações policiais, todo tipo de abuso por meio do Estado, que deveria garantir nossos direitos, inclusive o de ficar em casa. E nada disso é garantido, pelo contrário. Cada vez mais, o que é dito é que não temos direito a nada, nem à vida.

É muito difícil assistir a tudo isso e não poder falar, não poder gritar, não poder botar essa indignação para fora. Voltei mais leve para casa pelo fato de ter gritado.


N.: Qual a importância de movimentos como esse agora, globais e locais?

A.: Nós, aqui no RJ e em outros estados do Brasil, já vimos, há muito tempo, gritando que vidas negras importam, que a favela precisa ser respeitada. Infelizmente, aconteceu essa execução brutal do George Floyd, mas todos os dias aqui no Brasil dezenas, centenas de pessoas negras são assassinadas. E a gente não se cala, a gente grita.

Foi muito importante esse movimento lá nos EUA, porque parece que só o que acontece fora do Brasil sensibiliza. Acabou dando maior visibilidade, com os atos muito potentes, muito fortes lá, para o que acontece em outros países, como o Brasil. O racismo não é um caso isolado de um país. Muitas pessoas, mundo afora, morrem por conta da cor da pele e do local onde moram.


N.: O STF proferiu decisão liminar, no dia 05 de junho, proibindo operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia. Contudo, a decisão possibilita a realização de operações em casos “absolutamente excepcionais”, sem estabelecer critérios para que se tenha uma racionalidade mínima sobre quais seriam esses casos, bastando uma justificativa por escrito da autoridade competente ao Ministério Público Estadual. O Poder Judiciário pode ser, ao mesmo tempo, garantidor de direitos e produtor de desigualdade e racismo estrutural? O que esperar do Poder Judiciário?

A.: Essa possibilidade de operações policiais em casos “absolutamente excepcionais“ muito me preocupa, porque podemos fazer uma comparação com os chamados “autos de resistência”. Infelizmente, a polícia não é uma instituição transparente, confiável. Muitas vezes a polícia alega que agiu em legítima defesa e, na verdade, quando se é investigado, se ouvem testemunhas, há perícia de local, fica comprovado que a alegação de legítima defesa não era verdadeira. Eu me preocupo com esse critério. Quem é que vai garantir realmente o que é um caso excepcional ou não? Quem vai garantir que essa operação vai acontecer de forma correta, respeitando os parâmetros legais e os direitos dos moradores?

Antes de ter acesso ao sistema de justiça, eu achava que realmente encontraria justiça nesse espaço. Mas, infelizmente, não foi o que aconteceu. O poder judiciário, pela experiência que eu tenho, é garantidor de direitos quando se trata de garantir os direitos da elite. É garantidor de privilégios. Quando uma pessoa de favela, negra, é julgada naquele tribunal, já sofre um pré-julgamento. Eu acho que o judiciário produz desigualdade.

Uma pessoa branca que tenha sido pega com uma quantidade mínima de maconha, por exemplo, e uma pessoa negra que tenha sido pega com a mesma quantidade, e que as duas aleguem que aquela quantidade é para uso pessoal, quando chegam ao Tribunal de Justiça são julgadas de forma totalmente diferente. A pessoa branca é tratada como usuária, já a pessoa negra é tratada como traficante, como uma pessoa perigosa.

Quando é concedido o direito da esposa do Sérgio Cabral a cumprir pena em domicílio, alegando que ela precisava cuidar dos filhos, e milhares de mães dão à luz dentro do cárcere e são separadas de seus filhos, e não têm o mesmo direito de conviver com eles, não são vistas da mesma forma como pessoas, como mães.

O próprio Queiroz, tendo seu direito à prisão domiciliar garantido, a ficar com a esposa, que precisa cuidar dele porque ele tem vários problemas de saúde, enquanto a gente sabe de várias pessoas morrendo dentro das prisões, pessoas com doenças gravíssimas como tuberculose, até mesmo covid-19, sem nenhuma assistência médica, sem contato com a família. E o sistema de justiça negando vários pedidos para que essas pessoas possam cumprir suas penas em casa de forma digna.


N.: Muitos disseram que a pandemia seria capaz de fazer nascer entre nós um sentido de solidariedade inédito. Que o aspecto positivo desse momento seria o foco numa ética do cuidado, que as relações poderiam ser transformadas no mundo pós-pandemia. Há quem diga, contudo, que a pandemia está acentuando as desigualdades já existentes e que o mundo pós-pandemia será um mundo de acentuação de privilégios e desigualdades sociais, não só no campo da saúde. Qual a sua opinião? Você acha possível que o mundo se torne um espaço de relações mais cuidadosas?

A.: Não vejo essa força na pandemia. As pessoas que já eram solidárias continuarão solidárias, e as pessoas que só se preocupam consigo mesmas continuarão nesse ritmo.

A gente está vendo o quanto está sendo difícil manter esse isolamento social. Quem está com saúde só quer saber de voltar à rotina normal, sair, curtir. Uma parcela da sociedade, principalmente as pessoas que não dependem do emprego para manter uma vida boa. Essas pessoas continuarão pensando em manter seus privilégios.

Quem está no poder continua sem se sensibilizar com as pessoas que estão morrendo nos hospitais, sem se preocupar com as pessoas que estão morrendo porque não têm recursos. Continuam se apropriando da nossa dor, do nosso sofrimento para lucrar e manter seus privilégios.

E, na favela, são os próprios favelados que estão engajados em ajudar uns aos outros. As favelas se ajudando, as favelas se apoiando, é isso o que tenho visto.


N.: Virginie Despentes (escritora francesa feminista que já passou por muitas situações de violência) já fez uma aproximação entre o Estado e a função materna, como se o Estado fosse uma grande mãe a nos controlar, vigiar e determinar nossas vidas. Entendo a crítica à função materna também como uma forma de descolar o papel da mulher ao papel da mãe, numa sociedade tradicional como a francesa. Não deixa de ser uma crítica ao poder.

O que você, mãe que combate as violências de Estado cotidianamente, mãe que utiliza essa categoria como instrumento de luta, diria a respeito disso? O que significa ser mãe negra e de favela no Brasil?

A.: Ser mãe negra e de favela no Brasil é engravidar e muitas vezes não ter pleno acesso a uma rede de saúde para fazer um pré-natal; é chegar a hora de ter o seu bebê e correr maior risco de sofrer violência obstétrica na maternidade, ouvir deboches, ser deixada de lado, é correr um risco maior de morrer na hora do parto, de perder o seu bebê.

Ser mãe negra, pobre, favelada no Brasil é resistir a toda essa negação, é remar contra a maré, mesmo ouvindo que você não tem direitos. É precisar estar forte, lutando pela vida, pela sobrevivência dos seus filhos, familiares, amigos.

É ter medo a todo momento, ter medo de entrar numa loja com seu filho e ser abordada; ter medo de seus filhos terem que passar por essa situação constrangedora.

É educar, fazer o melhor que você pode pelos seus filhos e, ainda assim, esse mesmo Estado que nunca garantiu nada, nem a você nem aos seus filhos, dizer que você não tem sequer o direito de conviver com eles.

É ouvir de amigas negras, também moradoras de favelas, que elas são loucas para ser mães, mas que têm medo de colocar um filho nesse mundo e sofrer essas mesmas violências.


N.: O que você diria às mães que estão perdendo seus filhos nesse momento por ação ou omissão do Estado?

A.: A gente tem que pegar toda a nossa força, a força que restou após essa violência cometida contra nossos filhos e agir, se movimentar. Dizer ao Estado que a gente não aceita essa violência, o que ele faz com nossas famílias, com o lugar onde moramos. É mostrar que nos levantamos contra essa violência. Iremos contra isso em nome dos nossos filhos, pelos que se foram e pelos que ainda estão aqui.

Tiraram um pedaço de nós, mas, mesmo sem esse pedaço, mesmo dilaceradas, precisamos nos levantar contra esse Estado opressor, por nossos filhos, para que não seja em vão o sangue deles que foi derramado. Existem muitas vidas que dependem desse nosso movimento.


N.: O que você diria à mãe de João Pedro, menino executado dentro de casa numa operação conjunta da polícia civil e polícia federal no Complexo do Salgueiro no dia 18 de maio?

A.: Eu sinto muito pelo o que aconteceu com o seu filho, mas espero que você reúna forças para ser a voz do João Pedro. Porque ser a voz do João Pedro é ser a voz de milhares de outras crianças, jovens, adolescentes, mulheres também, que moram em favelas e sofrem essa violência.

É se manter de pé, não deixar que a história do seu filho seja esquecida, porque enquanto você viver e for a voz do seu filho, é uma forma de mantê-lo vivo também, manter essa memória viva. A gente não pode deixar que esqueçam a covardia que fizeram com os nossos filhos. O Brasil precisa ter essa memória e somos nós que não podemos deixar essa memória morrer.

Sinta-se abraçada por mim, com todo o meu carinho, e que Deus te dê forças para seguir em frente.


N.: Existe alguma forma de fortalecer a rede de mães e os moradores de Manguinhos nesse momento? O que fazer para contribuir em caráter emergencial?

A.: Quem se interessar pode entrar na página do Facebook do Fórum Social de Manguinhos ou das Mães de Manguinhos para contribuir com as cestas básicas. Também temos uma conta bancária para receber essas doações. Através dessas páginas as pessoas podem entrar em contato e receber maiores informações.

 

Entrevista concedida, por telefone, em 13 de julho. Submetida ao HuMANAS por Nina Zur e conta com autorização de Ana Paula Oliveira para publicação.

 

Nota

[1] Ana Paula Oliveira é pedagoga e cofundadora do movimento Mães de Manguinhos, formado por mães da favela de Manguinhos, no Rio de Janeiro, que tiveram seus filhos executados pelo braço armado do Estado ou que têm seus filhos em situação de privação de liberdade. Também participa do Fórum Social de Manguinhos, espaço formado por moradores, instituições e movimentos sociais para monitorar, conceber e executar políticas públicas para a favela. Ana Paula é mãe do Johnatha, assassinado em 2014, aos 19 anos, por um policial militar da UPP de Manguinhos.

 
 


Nina Zur é mestranda em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC Rio, vinculada à linha de pesquisa em Teoria do Direito, Ética e Construção da Subjetividade. Escreve e é mãe do Santiago, de quase 5 meses.

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